O melhor pior ano (até agora)

Jaraguá do sul, 01.01.2023

Roubando o lema de meus antigos companheiros de mountain bike, "quanto pior melhor", dou título a este post. A ideia é que quanto mais difícil uma trilha de MTB, mais prazerosa é de contar depois. E este ano que se encerra... sem dúvidas vale uma retrospectiva de tão "pior" que foi, não pelas pessoas ou experiências vividas, mas pelas péssimas decisões por mim tomadas. Vale também um "melhor" porque lembrarei com muita alegria a superação que foi chegar até o final dele.

Normalmente não espero que meus desejos sejam realizados, mas no primeiro dia de 2023 desejei algo para ano que acabara de começar, aprender a ter mais compaixão.

Que fique claro que quando me refiro a compaixão, não se trata do conceito "olhar com pena"; não, bem longe disso; aliás, ter "pena" é uma das piores sensações que se pode ter, independente se é para você ou para o outro o "olhar de pena". Para mim, compaixão começa primeiro para com nós mesmos e depois para os outros. Uma vez que amemos e cuidemos de nós mesmos, podemos ser muito mais úteis aos outros, como diria a filosofia do bigode, "é preciso ser um oceano límpido para receber um rio poluído". E o que seria nos amarmos senão, primeiramente, aceitar a nós mesmos como realmente somos. Por isso devemos entrar na dança do “Conhece-te a ti mesmo” ou "torna-te quem tu és", esta deve ser a primeira prática de amor. Quando praticamos isso, vemos as condições que nos levaram a ser do jeito que somos. Isso torna mais fácil nos aceitarmos, incluindo nosso sofrimento e nossa felicidade ao mesmo tempo.



Na empolgação da dança do "torna-te quem tu és"; já no primeiro trimestre, decidi então me preparar para, como diria Nietzsche, seguir de "peito aberto para a vida" e não me esconder mais da minha suposta transexualidade já latente alguns anos. Oras, "apenas isso" já é um baita divisor de águas no mundo falocêntrico que habitamos; é considerado loucura abrir mão do papel de "macho dominador com pênis", opinião bem difundida entre mulheres, inclusive. Mas se você não "deve satisfação" à ninguém, até que não é tão grande coisa, afinal a vida seria apenas a minha... Mas e quando temos uma vida a dois para ponderar?

É claro que não importa o quanto a gente idealize para melhor ou pior, a vida sempre vai dar um jeito de surpreender... 

O destino tomou nota de todos meus devaneios românticos, sentimentais e eróticos e os tornou de carne e osso; obra sublime do criador, tônus perfeito como raios de sol na primavera, toque como oliva nos dedos; lábios em brasa; olhos de profundo tom amêndoa; aromas em notas de aconchego, carinho e travessura; suavidade de um dente-de-leão; doce voz com acordes hipnóticos; pálida formosura; cabelos em puro negrume mais intensos que a própria noite; profundidade de oceanos... o sorriso... misterioso e convidativo... ah... o sorriso... Como foi possível uma existência em qualquer fluxo temporal ou realidade paralela sem este ser? Um anjo nos braços, com as tentações que só os demônios provocam.



A vida a dois mais uma vez arrombara a porta de meu coração. Planos de um futuro sonhado, mas nunca dito... casamento? Filhos? Apresentar para sogros e familiares? Interagir com os amigos, mesmo os mais descolados? Simplesmente viver o afeto? Capem diem? Não para quem acabou de se revelar "fora das expectativas"... O buraco é bem mais embaixo... E não importa o quão boas sejam suas características, caráter ou atos,  continua sendo um "incoveniente".


Azul e rosa nos céus... um sinal?


Fatalidade do destino, foi-se mais que um grande amor, foi-se mais que um sonho, foi-se um ideal de vida. Assim como Ulysses, o mesmo da Odisseia, precisaria encontrar meu lugar de direito no universo. Uma vez no inferno, porque não aproveitar e abraçar o capeta? Assim, abri mão também de meu nome de batismo e joguei fora quase todas as roupas do gênero que acabara de sair.

Além do amor que veio e se foi em padrões "Baumanicos", o que mais? Que tal aproveitar uma transição de gênero e mudar de cidade também? Que tal aproveitar e já mudar a perspectiva profissional junto? Que tal deixar o passado para trás mais uma vez? E as amizades já feitas, que tal deixá-las também? É... Não dá pra reclamar que o roteiro deste ano foi enfadonho, e assim, deixei a pacata Jaraguá do sul e tudo o que ela me representou para voltar a um dos lugares mais detestáveis que já pus os pés.


Frio e asfalto, até lembra música:
Hot ashes for trees?
Hot air for a cool breeze?
Cold comfort for change?
Did you exchange...

Eu sei, eu sei... A cidade mais inteligente do planeta, onde até andar de bicicleta deixa de ser um prazer para se tornar um estresse; a cidade menos empática do país; a cidade onde ninguém nasceu brasileiro; a cidade dos empreendedores que não conseguem inovar; a cidade dos inadimplentes; a cidade das aparências; a cidade dos dependentes químicos... A cidade... A cidade... bem, já deu... Curitiba; de novo e mais uma vez.

Como comecei a discursar sobre compaixão segundo conceitos mais parecidos com os do budismo, o melhor que cabe aqui também é o conceito budista de Samsara ou bavachacra.


Representação simbólica da roda da vida, Samsara

Samsara

Samsara significa “perambular” ou “dar voltas”. O termo descreve o sofrimento repetido ao qual todos os seres estão sujeitos. Trata-se de uma condição regida por ignorância e apego, onde vivência após vivência continuamos a perpetuar os mesmos enganos e a dar voltas inúteis em um processo altamente insatisfatório. Experiência após experiência, mesmas dores e mesmas frustrações repetidamente experimentadas. O samsara seria a antítese da liberdade, uma vez que estamos "presos" ao ciclo condicionado de tragédias enquanto não superarmos apegos e ignorâncias.

Até aqui, relatei sobre o ano de 2023, mas poderia muito bem estar falando novamente do ano de 2017; quando parti de Belém, deixei também meus amigos, minha cultura e meus costumes; também perdi um grande amor e acabei em uma solidão sem igual, adivinhem aonde? Curitiba, de novo.

Coincidência, idiotice, destino ou Samsara? Até a psicanálise tem um nome para isso: Sincronicidade. Diferente das tradições orientais, a sincronicidade tenta soar em termos científicos, tenta porque tem muita linguiça e misticismo envolvidos, funciona assim:

"Sincronicidade é um conceito desenvolvido por Carl Gustav Jung para definir acontecimentos que se relacionam não por relação causal e sim por relação de significado. Desta forma, é necessário que consideremos os eventos sincronísticos não relacionados com o princípio da causalidade, mas por terem um significado igual ou semelhante. A sincronicidade é também referida por Jung de "coincidência significativa".

Resumindo, a gente se ferra igual duas vezes, mas por causas diferentes, para quem curte um Paulo Coelho, deve estar imaginando frases do alquimista agora: "Nada acontece por acaso", "tudo está interligado", "é o universo conspirando"...

Tanto faz a nomenclatura e o grau de misticismo envolvidos, o importante é perceber o ciclo de tragédias se repetindo por escolhas irrefletidas, que visaram apenas fuga da dor ou apego ao prazer. No meu caso, gostaria de fugir da dor de ser o que sou e de me apegar ao simples prazer de receber afeto, mesmo que precisa-se fazer uso de máscara para tal.


Redenção

Já quase no fechar das cortinas do ano, ainda houveram cenas pós créditos, é... caros leitores... ainda faltou reunir as poucas alegrias do ano, minha redenção, meus aprendizados. Precisei vender meu carro e com o dinheiro, duas cirurgias há muito esperadas foram realizadas, uma que me deixou sem enxergar muito bem por praticamente três semanas e outra que me deixou temporariamente de muletas e dependente de terceiros para muitos afazeres. Trata-se respectivamente das cirurgias de refração de miopia e correção do temido, entre ciclistas, impacto femoroacetabular. Também, iniciei um acompanhamento de fonoaudiólogo, pois minha voz nunca foi condizente com minhas emoções. É estranho, mas ninguém acredita nas minhas palavras quando expressam sentimentos, mesmo quando acompanhadas de choro (e olha que choro MUITO); na maioria das vezes já não dá nem vontade de abrir a boca.


Quadril com menos ossos, entretanto, mais livre


Muitas e muitas vezes bateu "aquela vontade" de nunca ter existido, mas apesar de todo negativismo enredado neste infrutífero ano, ainda dá pra considerar as pequenas felicidades; diferente do ano de 2017, quase aconteceu diversas vezes, mas não me escondi e nem me reneguei. É claro que sofreria muito pelas minhas escolhas, mas nada na escala do que realmente aconteceu, mais uma vez o roteirista de 2023 está de parabéns.


Escolher o caminho com o coração é isso


Acredito que aprendi finalmente o mantra inicial da compaixão: “Que eu aprenda a olhar para mim com olhos de compreensão e amor”, escolhi amar a mim em primeiro lugar e depois outros.


Reaprendendo a caminhar

Então, voltando à lembrança do primeiro dia do ano, quando quis mais compaixão. Meu desejo foi prontamente atendido, de várias formas e passos que nem sequer pude imaginar e ainda vieram outros aprendizados junto:

  • Ficar três semanas praticamente sem abrir os olhos me fez enxergar melhor o que realmente é importante;
  • Estar de muletas e dependente de terceiros me fez ter mais humildade, também me possibilitou acreditar novamente na bondade humana, mesmo na fria Curitiba;
  • Na solidão e na dor, aprendi com quem realmente posso contar em momentos de desespero, sem nada poder dar em troca;
  • Vivi um romance digno de cinema, todavia, nem mesmo roteiros hollywoodianos conseguem se sustentar apenas de amor ou paixão;
  • Se colocar como prioridade pode custar muito, mas muito caro financeiramente e emocionalmente e pode significar abrir mão de pessoas ou ideais muito importantes;
  • Cuidar da própria saúde não é egoísmo, e as vezes ainda será preciso lutar por isso;
  • Nem todo sonho ou projeto podem ou devem ser compartilhados;
  • Não mudei de área profissional, mas ressignifiquei muita coisa em meu ambiente de trabalho e isso sem dúvida me deu uma das melhores lições de humildade afetiva da minha vida;
  • Colapsei emocionalmente como nunca acreditei que poderia acontecer, quase ao ponto de por minha própria existência em risco e, devido a isto, precisei fazer uso de ansiolítico. A que ponto chegamos não é? Essa foi pra queimar a língua depois de 17 anos trabalhando na área da saúde; esta foi a maior lição de compaixão que recebi na vida. Reconhecer e aceitar os próprios limites e a própria fragilidade não é fácil, e menos fácil ainda é aceitar que todos os que usam antidepressivo e ansiolíticos são como eu e eu como eles, cada um com suas histórias, dores e fragilidades;
  • Foi possível conhecer pessoas com as mesmas feridas que as minhas através de grupos de apoio;
  • Através da pura dor do desamor, pude relembrar meus ideais de vida e de relacionamentos românticos;
  • Descobri que não tinha completa incompetência em dançar, é... meu quadril tinha apenas 30% de movimento natural;
  • 2024 vai começar bem mais simples, sem IPVA, gasolina e manutenções;
  • Aprendi a sorrir com mais leveza e sinceridade.

Assim 2023 vai ficando para trás,
olhar triste, mas sereno;
sorriso ainda tímido, mas sincero

2024?

O sentimento que provavelmente irá reger este ano que está por vir tem sentido de (re)descoberta e/ou (re)aprendizado.

Iniciarei o ano reaprendendo a andar, reaprendendo a enxergar, reaprendendo quem sou, reaprendendo a usar a voz, descobrindo com quem me relacionar, reaprendendo a amar, reaprendendo a receber amor, aprendendo a me amar... 

No mais, dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, então deixarei uma imagem e poucas palavras:


Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? - Tudo.
Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

2024 para bons entendedores...

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