Bebop e a lição do passado mal resolvido

 


"Em 2071 os humanos terão expandido as fronteiras da sua habitação. Um acidente com a lua causou um acidente de proporções colossais na terra; os que sobreviveram vivem em outros planetas; o espaço e outros planetas foram desbravados, mas cada um ainda guarda suas peculiaridades, suas histórias e seus segredos.

A tecnologia passou, a era das telas passou, mas... o ser humano continua o mesmo; as histórias de suas vidas continuam marcadas por seus dramas, alegrias, aventuras, perdas e ganhos, afinal das contas, tudo se resume a como lidamos com nosso passado."

Esta é a premissa do meu anime preferido, Cowboy Bebop (de 1997 com direção de Schinichiro Watanabe). Já aviso que tem bastante spoiler, e se você não quer perder a experiência da surpresa, assista o anime primeiro. 

E a primeira pergunta que nos vem à mente é: O que é um cowboy pra início de conversa? A segunda, o que é Bebop? Bebop é a nave espacial que transporta os personagens e apenas isso mesmo.


Bebop


A figura do cowboy surgiu nos cinemas, no estilo cinematográfico do faroeste: Um homem errante; com vida marcada pela busca de vingança ou uma luta sobre seu passado inglório; se sustenta caçando recompensas, é solitário por causa de suas luas pessoais.

O anime abre com Spike e Jet, caçadores de recompensas, como no mundo real, as vezes ganham e as vezes perdem, aliás, não é um estilo shonem e muito menos uma história clássica de herói, logo, não aguardem cenas bizarras de escalonamento de força, cenas de ação mal feitas e muito menos milagres acontecendo; trata-se de um excelente retrato da vida humana. 

De início, pouco sabemos da vida de Spike e Jet. Notamos que eles já são muito experientes, mas não são imbatíveis; são bons no que fazem, mas como qualquer ser humano, as vezes falham também; ambos possuem características de identidades particulares, gostos e necessidades próprios; ambos também têm um passado não revelado, nebuloso e obscuro.



Descobrimos a passos de tartaruga que Spike parece ter vivido e perdido um grande romance, ao mesmo tempo em que sobreviveu a alguma tentativa de assassinato. Descobrimos também que Jet já foi um policial que abandonou a corporação após uma emboscada. Nada muito revelador.

Posteriormente, mais três personagens integram a narrativa, Faye, Ein e Ed: 

Faye, sofre de amnésia. É mostrado que ela estava em uma viagem espacial quando ocorreu um acidente com sua nave; seu corpo é preservado congelado por quase 60 anos; depois de curada, ela ainda tem que lidar com as despesas médicas (achou que o capitalismo tinha acabado mesmo? kkkkkkk), sem muitas opções, acaba se tornando uma ladra, trapaceira e caçadora de recompensas. Se junta ao bando apenas por interesse.

Ed, uma criança hacker de gênero não binário (isso em 1997 meus caros), vive sozinha em um deserto e não sabemos absolutamente nada dela; achou legal a possibilidade de se juntar ao bando e é isso, simplicidade é seu traço mais marcante.

Ein, um cão superinteligente criado como experimento genético, é o único que sabemos o passado. 

Percebam então que apesar da premissa de futuro, naves espaciais e tecnologias avançadas, na verdade o anime trata de pessoas se unindo para fugir de seus passados não resolvidos.


Passado de Jet

Jet retorna para seu planeta de origem e acaba por encontrar sua ex-esposa. Ele tinha como expectativa "consertar" o passado, mas descobre que isto já não era mais possível, sua ex-esposa mesma diz que a vida seguiu em frente depois dele, o tempo passou e ela não ficou parada esperando que ele retornasse.



O simbolismo desta cena é devastador. Jet mostra um relógio parado, este pertencia a sua ex-esposa; ele guardou o relógio, mesmo depois que parou de funcionar. De alguma forma ele criou a ilusão que seu passado ficaria ali, parado e imóvel assim como o relógio. Sua esposa já não lhe quer mais, ela já está com outra pessoa.



Jet entende que no fim das contas, só lhe restava seguir para frente. Em outra cena, vemos Jet sereno em frente ao mar, onde decide jogar fora o relógio parado, como quem jogasse fora o passado que tanto lhe atormentava.


Passado de Faye

Em um dado momento, ela encontra algumas "fitas VHS" (pouca gente ainda sabe o que é) que narram seu passado (Faye tem tanto medo de descobrir quem é que reluta em ver os vídeos e foge até não conseguir mais). A mente de Faye é invadida por todas suas memórias e lembra aonde morava; ela então tenta retornar à sua antiga casa, mas ao chegar lá, encontra apenas destruição.

A sequencia desta cena é uma das melhores do anime, silêncio angustiante seguido da música call me call me ao fundo (AMO DEMAIS). Composição da lendária Yoko Kanno e execução de Steve Cont. É de fazer chorar.


Na tentativa de recuperar sua identidade em seu passado lá atrás, Faye descobre que no fim das contas não existia "lá atrás", apesar de recuperar suas memórias, ela descobre que não poderia voltar àquela época do passado.

Faye decide retornar para a Bebop, onde estava apenas por interesse; ela descobre que já não tinha para onde ir, o passado ficara para trás.

Jet e Faye entendem que não poderiam viver presos ao que já passou. Faye retorna à bebop e aceita seu novo lar, vive a perda e o luto de todos seus entes e amigos mas continua seguindo em frente. Jet se livra do relógio e volta à bebop e aceita sua nova família. Spike toma outro caminho.


Passado/destino de Spike

Descobrimos que Spike fazia parte de uma organização criminosa e decidiu fugir com sua paixão, Julia. O que Spike não sabia era que Julia havia sido ordenada de matar Spike; coisa que ela não foi capaz de fazer e desde então vive como uma fugitiva. Spike consegue sobreviver forjando a própria morte.

Apesar de bem sucedido em sobreviver, Spike perde um de seus olhos e coloca uma prótese de vidro, nas definições dele mesmo, enquanto um de seus olhos consegue ver o presente, o outro é virado para o passado e sempre lembra aquilo que ele teve que deixar para trás. É o homem dividido entre o que é e o que foi.

Spike reencontra-se com Julia e assiste esta ser assassinada na sua frente. Ele decide então, acertar as contas com o líder da organização criminosa e mandante dos assassinatos tanto dele quanto de Julia, Vicious.



Há ainda uma brecha para mais simbolismos, no meio do anime, aparecem dois "índios", um deles um shaman sabe-tudo e o outro, uma criança, que parece ser aprendiz. Tanto Vicious quanto Spike são almas infelizes que não conseguem crer no Wakantanka, uma entidade divida suprema, deus da eternidade e criadora de tudo que existe segundo o shaman.

O que o shaman indica é que tanto Vicious quanto Spike são infelizes porque se centram a suas questões do passado e não as entregam ao ser divino que poderia resolve-las e portanto, vivem infelizes buscando redenção apenas por suas próprias forças, ora fugindo, ora batalhando contra o assado mal resolvido. O olho de vidro de Spike é fixado no passado e não permite que ele siga em frente e viva plenamente o presente; Spike é escravo de suas pendências.



Vicious, descobrimos, apesar de ser lider da organização criminosa, também não consegue deixar seu passado com Spike, também é escravo de suas pendências, são dois iguais lutando. O que eles não entendem é que o apego ao passado também traga tudo o que eles são no presente.

Certo de sua morte, Spike decide sacrificar o presente (e o futuro) para resolver o passado com Vicious. Depois de muito tiro, angustia e suspense, Spike sai da sala onde confrontou e matou Vicious, o lugar de seu olho de vidro está vazio e sangrando; ele caminha por uma escadaria com apenas um olho aberto, o do presente; Sorri como se finalmente encontrasse paz e cai indiscutivelmente morto no chão. Uma redenção através da morte.



Passado de Ed.

Apesar do passado desconhecido, Ed é a única (junto com Ein) que vive apenas no tempo presente, talvez por isso, Ed. não tenha contas a acertar com o que passou. (o fato de ser criança também...mas ai deixa de ser tão romântico). Ed deixa a melhor lição de como viver, pois ela é como a água, apenas contorna as barreiras e segue em frente.


A lagosta da geladeira

Um dos episódios que parece deslocado dos demais é o da geladeira (episódio 11), porém, é um dos episódios mais simbólicos da série. 

Jet vai até uma área bem pouco frequentada da bebop, encontra uma geladeira bem enferrujada e empoeirada e é mordido por uma espécie de bicho desconhecido; acontece que a mordida do tal bicho deteriora rapidamente a consciência da vítima e ela fica incapacitada. Ed propõe que seja um mutante que ataca as vítimas. Apesar do estado de Jet ninguém acredita na teoria da "coisa" que ataca repentinamente. 

Spike e Ed decidem averiguar mesmo não tendo convicções, Faye decide relaxar tomando banho. Mesmo tentando relaxar, a "coisa" ataca Faye; Spike e Ed agora decidem caçar a "coisa" com mais vigor; o episódio fica então uma mistura de Ghostbusters com alien.



Spike consegue chegar ao local da geladeira e tem um pequeno "flashback", ele havia pego uma lagosta e guardado na geladeira para degustar mais tarde, acabou esquecendo por MUITO tempo, visto que a geladeira já estava empoeirada, suja e enferrujada; depois disso, passou a acreditar na teoria do ser mutante que Ed havia proposto. A "coisa" ataca Spike também e não vendo outra alternativa, ele decide então concluir a abertura das comportas da Bebop para que a geladeira fosse jogada ao espaço como lixo espacial.

Ao final, Spike fala: "Não se deve deixar as coisas na geladeira. Essa é a lição". 



Ora, o que seria a "coisa" que nos ataca quando estamos distraídos, tentando relaxar ou tentando concluir uma tarefa? Que tal o passado doloroso não resolvido.


Já fazia MUITO, MUITO tempo que gostaria de escrever sobre esta obra que vive em meu coração. Por esta época, a "coisa" me atacou e depois de uma certa incapacidade, pude me recuperar para retirar algumas coisas da geladeira, refletir e escrever.


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