Tudo posso, mas nem tudo me convém

 


“E assim é o ser humano: tão vazio que se preenche com qualquer coisa, por mais insignificante que seja”

Blaise Pascal


Que Curitiba é fria em termos afetuosos não é novidade para muitos brasileiros, assim como também não é novidade entre o povo a quantidade crescente de moradores de rua e drogadictos em grandes capitais, claro, sintomas clássicos de zonas muito urbanizadas; outro assunto também já muito conhecido, mas pouco comentado é o Brasil como protagonista na violência contra transgêneros e campeão imbatível de consumo de pornografia... trans...há 15 anos.

Este post sem dúvidas é o mais destoante de todo este blog e da minha vida também; não é um relato de como queimar calorias, não é sobre tentar cultivar o melhor em si, não é sobre refletir, não é sobre consertar bicicletas, não, nada disso, está mais para um recorte demonstrando como é fácil perder o rumo da vida e se afundar em desgraça, é também uma constatação de como a ilusão de liberdade pode ter levar direto para dentro de gaiolas.



Quando decidi voltar a residir em Curitiba já tinha plena consciência que por estas bandas os nativos além de frios e fechados também são pra lá de ressentidos, a maioria vive de aparências; é tipo agir pensando "no que irão pensar de mim?"... Acho que deu para você entender. A consequência deste comportamento alimentado por aparências é uma sociedade que funciona de um jeito à luz do dia e de outro nas sombras.

Dia desses tentando interagir, entrei em uma comunidade virtual ESPECIFICAMENTE LGBT curitibana, decidi que não gostaria de me relacionar romanticamente e muito menos estava em busca de sexo casual. Naquele momento, estava procurando apenas sondar lugares e pessoas para trocar ideias, se dai, a relação fosse adiante seriam outros 500. Fiz meu perfil fidedigno à realidade, pus uma foto de perfil meia boca e fiz questão de afirmar que era mulher transgênero, até porque não mereço bi festinhas e se frustrando depois; passei a digitar um texto me apresentando ao grupo, deixei muito claro o que o que estava buscando e o que não estava.

Pasmem...



Menos de uma hora depois do texto de apresentação, minha caixa de mensagens abarrotou de mensagens. Eram homens casados, eram homens baixos, altos, gordos, o musculoso da academia, o alfa branco e loiro, tinha careca, tinham os novinhos, haviam os conservadores... Nenhum certamente leu o que eu havia escrito, talvez apenas imaginaram carne nova no pedaço; um show de horrores com nomes, sobrenomes e fotos de perfil (informações verdadeiras? não colocaria a mão no fogo), TODOS em comum querendo matar curiosidades e realizar fetiches NO SIGILO com uma mulher trans. Mensagens trabalhadas com lisonjeio? nem sonhando... a maioria das mensagens quando havia texto era quase monossilábica, "quer trepar?"; as vezes se resumiam a fotos de órgão genital seguido de "tá afim?" ou "vai rolar?".



Confesso que em um primeiro momento me senti muito poderosa, imagens contendo chicote, meia 7/8, acessórios diversos e salto alto inundaram minha imaginação, e comecei a rir de maneira maléfica descontroladamente como nunca rira antes; humilhar esse tipo de gente entre quatro paredes seria inimaginavelmente divertido; mas isso iria transgredir uma série de valores morais internos e também, se tudo isso não se encaixa para mim, sempre haverá quem queira, fim de papo, isso talvez seja a maturidade finalmente dando as caras? Enfim, virei as costas. Não serei eu a mudar estes homens e muito menos a sociedade campeã de consumo de pornografia trans.

Não era o que buscava, aliás, estava muito longe do meu objetivo inicial, não gostaria de ser objetificada, ter relações rasas e muito menos viver às escondidas; todavia, a sementinha do mal já havia brotado e fiquei dias perturbada com o "e se?". Chegada a consulta com a psicóloga do centro de apoio à população trans, não pude deixar de contar a dúvida que pairava no ar, seria eu uma rocha que fora incapaz de "evoluir" moralmente para me divertir? aliás, o que era moral? Nesta altura do campeonato, nada mais sabia de nada. Como uma aparente luz guia entre dúvidas nebulosas, várias línguas deram o mesmo conselho, permita-se...

Irei pulas as circunstâncias que me fizeram chegar aqui, mas seguindo o "permita-se", encontrei-me com uma mulher heterossexual, um rapaz homossexual e uma mulher bissexual, recém conhecidos, todos estavam já bêbados, exceto eu, pois era motorista da rodada, ainda bem, ainda bem. Na playlist, músicas que em sã consciência preferiria nunca ter tomado conhecimento da existência, mas vamos lá, "permita-se"; minutos depois alguém puxou um cigarro de cannabis, e logo apareceu também um Narguilé, tudo isso claro, com mais álcool, cervejas, caipirinhas, vodcas... ave Maria... "Permita-se" dizia com meus botões. Apesar de todo ocorrido, a conversa central estava bons, discutíamos sobre trabalho, sociedade, sexualidade, estilos de vida. Apesar dos temas iniciais serem interessantes, não havia profundidade pois todos estavam... "distraídos" demais com as substâncias em questão para pensar além do comum.

O "permita-se" não deixava meus pensamentos e músculos livres, estaria sendo rígida demais? Será que eu era mesmo tão careta? Será que vivi "errado" ao evitar tais "prazeres" à um pequeno custo da saúde? Seriam minhas convicções tão cegantes assim? Ou será que estava mais inclinada à autopreservação? As coisas tomaram um rumo beeem estranho, peguei minhas coisas e sai, iria concluir meus pensamento em meu travesseiro. Até o cair no sono, apenas uma coisa me vinha à cabeça, hedonismo.


Hedonismo


Eros e Psiquê


Hedonismo é uma palavra originária do termo “hedonê” que, na cultura grega, diz respeito a uma deusa da mitologia, responsável por simbolizar o prazer. Filha de Psiquê e Eros, ela era a mais fiel representação de uma vida altamente prazerosa. Assim, podemos dizer que o hedonismo consiste em uma filosofia de vida, que tem como base a busca do prazer, a fim de encontrar a felicidade. 

A sociedade de agora, pode ser facilmente enxergada como uma uma sociedade que tem como fim último da sua existência a busca pelo prazer, o que não é errado, quem não quer prazer, não é? Todavia, uma busca desenfreada pelo prazer se torna uma espécie de “novo ópio" com finalidade única de nos tirar do tédio do trabalho mecanicista diário, de uma vida sem sentido e sem propósito e da infelicidade da solidão. Neste campo de prazeres efêmeros e desenfreados que preenchem, poderia englobar boa parte dos cidadãos com a frase: 

“se sofro, logo busco o prazer”

Alguém neste momento vai pensar: "Quem não gosta de prazer?" Ou "quem é que gosta de sofrer?"; e calma povo, a questão aqui é a seguinte: Se o prazer é o objetivo de uma pessoa ou de uma sociedade e o destino do homem é o mesmo dos animais, inclusive prazer é um dos instintos animalescos presentes no homem que o impedem de transcender. Caímos então num niilismo, onde nada mais faz sentido e não acreditamos em mais nada; comamos, bebamos, fumemos e cheiremos também, aproveitemos nossa curta vida porque amanhã morreremos. Isso parece fazer sentido? Seria a causa de tantos antidepressivos e ansiolíticos vendidos nas farmácia. Pois pra mim apenas traz muito mais vazio e carrega algumas consequências também:


Sexo e objetificação

O maior símbolo da sociedade do prazer, o sexo livre. O prazer sexual tomou forma com queda de tabus, multiplicação dos parceiros, diversificação das práticas sexuais, etc. O "amor" livre que surgiu desse movimento rejeita o casamento monogâmico e despreza estereótipos; acredita no amor sem posse, controle ou nome. Em um tempo onde os laços humanos são frágeis, onde os relacionamentos são produtos de consumo, as consequências desse modo de vida egoísta são devastadoras. Tudo parece muito bom, evoluído e tentador, mas na prática, é apenas mais uma busca de prazer sem comprometimento.

Oras se não é justamente o que os travequeiros queriam! Objetificação contra a vontade e no sigilo, sem compromisso; e não é difícil de estender este pensamento para qualquer outra pessoa feita de objeto contra sua vontade também. De certo, se eu ou outra pessoa qualquer negássemos os diversos convites estaríamos sendo caretas ao negar o "amor" e o prazer livres? Na verdade, ao aceitarmos estaríamos nos afundando em um abismo de prazeres efêmeros e meramente carnais. Paradoxalmente, de tanta liberdade e descompromissos chegamos ao ponto onde vivemos na era de relacionamento líquidos, como afirma o sociólogo polonês Zygmunt Bauman.


Roda do desejo

Como no filme "they live" (Recomendadíssimo), vivemos em um tempo que nos conta sobre liberdade, mas nos outdoors o que vemos é a pura escravização “compre, consuma, obedeça, desfrute”, tudo muito passageiro obviamente pois é preciso girar a roda do desejo/consumo rapidamente.



Assim, a "mão invisível" do mercado leva o consumidor à moda de Platão a desejar sempre o que ainda não tem e assim caminha escravizado de um lado para o outro em busca de novidades, torna-se presa fácil dos anúncios que deixaram de ofertar apenas produtos, agora o lance está nas experiências e sensações, cada vez mais "descoladas" claro, pois é preciso fugir do tédio da repetitividade do dia-a-dia e da experiência comum.

E assim parte-se incessantemente atrás de novidades mais e mais intensas. Uso de drogas cada vez mais fortes, sexo cada vez mais "sem limite", pornografia cada vez mais explicita, porres cada vez mais vexaminosos, séries e mais séries para maratonar e redes sociais cada vez mais maquiadas estão inclusos neste pacote também. E nem irei adentrar em dizer o quanto isso causa cada vez mais isolamento e falta de empatia, já que tudo não passa de objeto para promover prazer unicamente individual.



Experiências que não podem passar "em branco" na vida humana e a justificativa do adicto e do senhor dos escravos sempre será o "só se vive uma vez"; na real, é mais uma forma de consumo destrutivo e irresponsável voltado para prazeres e resultados imediatos, indiferentes às consequências em longo prazo.

Acho que deu pra ver o quão abismal é possível chegar seguindo o "permita-se" na sociedade do prazer. Preciso afirmar que tudo citado como exemplos acima são casos extremos, claro, mas devemos sempre ter em mente que todo incêndio começa com uma simples fagulha. 

Neste momento, talvez você tenha comentado consigo coisas contendo "é só não ir tão fundo" ou "é só não exagerar", mas ai saímos da liberdade irrestrita hedonística moderna para adentrar em um outro campo, o dos valores auto cultivados.


Valores


Valores são pilares na nossa vida, nos norteiam para ter o caráter que temos, por exemplo mentir e roubar seriam atos inaceitáveis para quem portasse honestidade como valor. Em alguns países de língua inglesa existe um ditado, "não se pode fazer um omelete sem quebrar alguns ovos"; é o mesmo que dizer "permita-se" sobre coisas que vão de encontro com nossos valores; você até come o tal omelete, mas as custar de quebrar algo de forma irreversível e pior, o que restou fica também, vazio.



Acontece que um valor não pode ser tão frágil quanto uma casca de ovo, afinal é um pilar de caráter; é um guia em momentos de indecisão; é o que nos move a fazer o que acreditamos ser correto, é o que nos conecta com a pessoa que gostamos de ser. Para entender melhor, um valor não é um objetivo, é um norte, muitas vezes escolhido inconscientemente. Estamos quase sempre em contato com nossos valores, por exemplo, um objetivo seria entrar e se formar e uma faculdade, um valor nesse caso poderia ser "se aprimorar" ou "curiosidade em aprender". Se temos "vínculo" como valor, este estará presente não apenas no casamento, estará presente também em nosso trabalho, na família, nas amizades.

Acho que deu para entender que valores são amplos e continuamente nos direcionam para definir quem somos e como agimos. Sabe o que acontece quando não seguimos nossos valores? angustia, culpa, dissonância cognitiva. Quebre alguns valores e logo você ficará em desgraça consigo mesmo, pois em tese, traiu a si mesmo.

É importante deixar claro que um valor é MUITO diferente de uma convenção social. Nos dois relatos acontecidos comigo, as convenções sociais envolvidas provavelmente poderiam ser liofilizadas em prazer e liberdade; acontece que dentre meus valores estão "aprofundamento de vínculos" e "auto preservação". Das conclusões:

- É muito improvável que relações carnais de uma noite se aprofundem;

- Drogadictos buscam outros drogadictos para se relacionar, deixando-os restritos a um grupo sempre superficial, pouco estável e pouco duradouro;

- Travequeiros e curiosos são grandes propagadores de DST e violência, física e mental, não valeria a pena acabar com uma vida por causa de uma noite;

- Abrir mão de preferências pessoais apenas para se encaixar em um grupo é o mesmo que dizer que "sou menos importante" que o grupo, uma relação injusta será formada sempre;

- No grupo de jovens, uma das pessoas parecia ter o dobro da idade de tanto fumo; outra perdeu prova e trabalho na faculdade... Isso vai muito contra se auto preservar e ter uma vida saudável.


Confesso que com muitos acontecimentos turbulentos pra lá de intensos me acometendo em tão pouco tempo, duvidei de meus valores e consequentemente de quem eu era também, mas ao espiar pela janela este submundo hedonista moderno redescobri muito de mim mesma, a verdadeira conclusão que cheguei é que:

Pessoas que se divertem até a morte, que se entorpecem de entretenimento e diversão não têm tempo nem disposição para refletir sobre grandes questões da existência, pois estão saturadas de distrações.

Não entendam que sou contra distrações e entretenimento... Minhas bicicletas e este próprio blog são materializações de minhas mitigações de dor e fugas da realidade, mas afirmo que ambos não vão de encontro aos valores que escolhi para mim. Pela premissa Estoica, por vezes é melhor estar na integridade, mesmo que em solidão do que se corromper levianamente. Para o budismo, seguir o Dharma muitas vezes é fechar os olhos para o mundo comum. E é isso, antes só do que mal acompanhada.

E você? Já pensou no que te norteia?

Comentários

Postagens mais visitadas