Primavera da alma

 


Disseram-lhe que como uma corrente, você é tão fraco como seu elo mais fraco.

Isso é apenas uma meia verdade.

Você também é tão forte quanto seu elo mais forte.

Medir-se por seu menor feito é calcular o poder do oceano pela fragilidade de sua espuma.

Julgar-se por seus fracassos é culpar as estações por sua inconsistência.

Khalil Gibran


A criação da máscara


Ao me entender enquanto pessoa trans, aprendi desde imemoráveis tempos de infância a lidar e conviver com a solitude e a solidão, duas coisas tão parecidas, mas ao mesmo tempo tão diferentes.

Uma das primeiras lições de vida foi ter que aprender a lidar com o sentimento de estar só. Descobre-se que existem dois "estar só", a solitude que fortalece, acelera e dá assertividade ao próprio crescimento, nos amadurece (o nome deste blog vem daqui). E a solidão que machuca, é o esquecimento, a amargura de não ter apoio, o não sentir-se amada, é o não poder ser, o não pertencer. 

Na infância, a solidão tem outro agravante que poucos adultos já pararam para refletir, seu corpo infantil é transformado em objeto e fetiche, pois quando você chama um menino de mulherzinha é indiretamente que se está falando de vulgaridade sexual; quando se fala da maneira deste menino andar, é indiretamente que o adulto fala que existe uma sexualização em seus movimentos. Lamentável não é?

O choque sexual destas afirmações vem tardiamente juntamente com as descobertas da adolescência e da puberdade, mas ainda criança se aprende que chorar, falar fino, gostar de cores, roupas, expressar sentimentos ou dançar por exemplo é algo para se esconder da família sob ameaças de deserção de laço parentesco (ser expulsa de casa) ou apanhar até aprender a "esconder melhor". Então a primeira solidão é essa, de não ter com quem partilhar a sensação de inadequação, ainda criança, ainda dentro da família. Também marca a criação da primeira máscara social.

Decidi então que tudo seria transitório, ciente de minha máscara não criaria apegos; deveria aguentar apenas algumas décadas, me formar em alguma profissão e desaparecer para assumir outra identidade com a qual pudesse me identificar melhor. E assim o fiz, me formei aos 21 anos, aos 22 anos iniciei minha tão sonhada transição e aos 23 anos sai de casa. Mas não havia aprendido a criar laços e tão pouco a confiar em muita gente, a máscara usada deveria ser impecável por medo de falta de aceitação na escola também. Afirmo que este foi o meu elo mais fraco da corrente da vida.


Só no sigilo


Depois de meses vivendo efetivamente como Stella, posso afirmar que os primeiros passos em direção a mim mesma foram MUITO doloridos e tortuosos, mesmo já tendo transicionado no passado, o medo da perda, da punição e do abandono fica meio que incrustado e é sempre difícil tirar uma máscara e deixar a face nua perante o sol. Hoje, posso afirmar que o elo forte da corrente da vida está no cultivo do amor próprio.

É verdade sim que as vezes a solidão bate, e bate muito forte aliás. Não é a solidão de não ter uma conchinha pra dormir em noites geladas, é uma solidão que vem lá do "estar só" do passado. A transfobia sofrida deixou marcas tão profundas que afetaram diretamente minha autoestima. Fica sempre o pensamento: “se fui rejeitada por quem dizia me amar, quem vai me amar de verdade?”. A solidão se torna quase um mandamento e nós, pessoas trans passamos a pensar que esse é o destino. Sorte de quem teve o apoio familiar, queria demais...

Mas amor próprio não é apenas passivo, também é cuidar ativamente sobre quem entra e quem fica em nossas vidas e nesse ponto estou ficando realmente excepcional, de tantos aspirantes a amantes rejeitados por exemplo, já estou consegui até categorizar:

  • Pessoas curiosas: Curiosas kkkk... Brincadeira, querem apenas ver ou ter uma experiência trans
  • "Travequeiro": Geralmente homens quase idosos, são um pé no saco e sabem disso e por isso alguns chegam a oferecer dinheiro para terem a companhia de algum transgênero.
  • "T-lovers": Jovens ingênuos bem informados que realmente gostam de pessoas trans pela essência e não pelo corpo e não têm medo de assumirem isso para o mundo. UAU!!!!! Dura até o momento de assumirem e terem que lidar com o preconceito da família, amigos... Valentes, mas ainda ingênuos para a vida...
  • "Heterotop": Geralmente homens também, são tão confiantes na própria aparência que se julgam capazes de pegar qualquer um, não valem nada para um compromisso e agem violentamente se rejeitados ou descobertos dando em cima de uma trans
  • Pessoas bem resolvidas: Conto nos dedos de uma das mãos este tipo. Felizmente pude conhecer, por isso sei que existem, assumem sem medo, tanto relacionamentos com pessoas trans quanto compromissos de relacionamento, elas te enxergam como essência e não como carne, fantásticas.
Exceto pelos "Tlovers" e pessoas bem resolvidas, todos os outros são farinha podre do mesmo saco, não servem para nenhuma relação saudável, seja com trans ou com CIS, mas a objetificação e fetichização do corpo trans é cristalina nas cantadas e conversas, a maior prova disso são os pedidos de sigilo... Ora, ora... Como que alguém que diz que quer se envolver com você tem vergonha de aparecer com você?! Olhos abertos caros leitores, migalhas afetivas nunca mais, não é?!

Sair desse lugar de objeto, fetiche exige um esforço quase épico.

Amor e o respeito que deveriam ser básicos a todo ser humano, acaba por se tornar um privilégio cisgênero e olhe lá . Já que o externo é complicado o jeito é também aprender a trabalhar o ser interno e não há maior demonstração de amor próprio que se auto cultivar e florescer.

No mais:


O amor só conhece sua profundidade
na hora da separação
Khalil Gibran


Estar unida à mim novamente, sem máscaras é como retirar um sapato apertado usado por muito, muito tempo, onde só quem usou sabe o quanto doeu e o quanto deformou os pés. Apesar de previsões assustadoras sobre um inverno rigoroso iminente por estas bandas, sinto-me no meio de uma belíssima primavera com direito a flores desabrochando e pássaros cantando.

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