Cicloturismo na Belém da Belle Époque e XC Marajó

Uma bela noite depois de sair do trabalho, recebi um pedido inusitado de montar uma bicicleta para minha esposa, mas o pedido não parava por ai, a ideia era que esta mesma bicicleta seria utilizada para pedalar até o Pará.

Embora a fagulha deste sonho não tenha se exaurido, não deu para pedalar de Curitiba à Belém, ainda; mas surgiu uma boa oportunidade de pedalar no Pará, em um dos meus locais preferidos, lá na terra dos meus avós, na ilha do Marajó.

O pessoal da E.A.R.T (eartaventura) anunciou a realização da já tradicional pedalada na ilha do Marajó, este ano, batizada de XC Marajó. Guiado pela emoção, decidi que iria custe o que custasse e de quebra, ainda levaria alguém comigo para conhecer minhas origens e mostrar um pouco da cultura que mais pareceria de outro continente.


Equipamentos


Uma das regras para ser mochileiro e cicloturista é levar apenas o necessário e quando possível, contar com equipamentos versáveis, robustos, duráveis, leves, compactos e se você for do tipo que a grana sempre está curta ou se mete em becos de índole duvidosa, itens baratos também vem muito bem a calhar. Para quem esta engatinhando neste campo, meus conselhos mais sinceros é utilizar o que já tem em casa ao invés de gastar logo antes da primeira viajem e depois ir adquirindo as coisas conforme necessidade. Mas chega de enrolação, irei listar o que levamos nesta pequena viajem de sete dias pelo norte do país:



#Partiu cidade das mangueiras


À esquerda o recomendadíssimo malabike da ararauna e à direita o estreante malabike da Alpamayo


Uma das primeiras preocupações que tivemos foi o quanto gastaríamos para transportar duas bicicletas em uma viajem de aproximadamente 3500 km pelos céus brasileiros. Pois bem, quando realizei o vale europeu (Cicloturismo no vale europeu catarinense) a companhia aérea considerou meu malabike como bagagem normal, e assim entrou na franquia de 23 kg ofertada na época; seguindo o mesmo raciocínio, adquirimos duas passagens pela LATAM pagando a mais pela tal franquia, MAS... descobrimos que teríamos que desembolsar R$ 175,00 para embarcar cada bicicleta no avião, pois para a LATAM, seriam consideradas bagagens especiais, então, para quem quiser viajar de avião com alguma magrela, já fique de olho neste detalhe.



Ao desembarcarmos em Belém, além do calor já notável, a LATAM tratou de providenciar um filme de suspense interativo:


Guidão para fora...

Blocagem para fora...

Com o tratamento carinhoso dos funcionários da LATAM, o malabike da Alpamayo rasgou com bastante facilidade, e de quebra a coroa da antares que estava na mala empenou... Já o malabike da araúna chegou intacto, assim como a nina que estava na mala. Gambiarras aqui e ali e logo conseguimos montar as duas bicicletas:




Após o infeliz episódio da coroa empenada, a LATAM se prontificou a arcar com os custos da manutenção ou troca do item danificado e assim estávamos prontos para sair do aeroporto no melhor estilo cicloturista, pedalando:



Rumo ao hotel

Três anos longe do caótico trânsito Belenense, foi rápido relembrar a tensão que é pedalar até o centro da cidade, motoristas mal educados, buracos, falta de fiscalização, ladrões e mais ladrões, mas pelo menos a cidade é plana e o mais importante, conseguimos chegar inteiros ao hotel:


Belle Époque


Para quem jamais ouviu ou estudou esta expressão, segue um brevíssimo resumo do wikipédia:

A Belle Époque (expressão francesa que significa bela época) foi um período de cultura cosmopolita na história da Europa, que começou no fim do século XIX, com o final da Guerra Franco-Prussiana, em 1871, e durou até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. A expressão também designa o clima intelectual e artístico do período em questão. Foi marcada por profundas transformações culturais que se traduziram em novos modos de pensar e viver o cotidiano.

É considerada uma era de ouro da beleza, inovação e paz entre os países europeus. Enquanto novas invenções tornavam a vida mais fácil em todos os níveis sociais, a cena cultural estava em efervescência: cabarés, o cancan e o cinema haviam nascido, a arte tomava novas formas com o Impressionismo e a Art Nouveau. A Belle Époque foi representada por uma cultura urbana de divertimento, incentivada pelo desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte, os quais aproximaram ainda mais as principais cidades do planeta.

Fonte: Belle Époque


Por mais absurdo e irreal que possa parecer, Belém fez parte deste período dourado, inclusive era chamada de Paris n'américa. MAS, não nos enganemos, diferente do ocorrido na Europa, o movimento só aconteceu por estas bandas por interesses econômicos promovidos pelo ciclo da borracha, uma vez que a demanda provocada pela revolução industrial, fez da borracha natural um produto super valorizado na Europa... E ai... voltamos às aulas de história sobre colônia e colonizador, explorador e explorado, e por ai vai.

Belém e Manaus estavam na época entre as cidades brasileiras mais desenvolvidas, e entre as mais prósperas do mundo vivendo seu apogeu entre 1890 e 1920 contando com tecnologias que as cidades da regiões do Brasil ainda não possuíam, através de construções de boulevards, praças, bosques, mercados, política sanitarista, transporte público e iluminação.

Ambas possuíam luz elétrica, água encanada, rede de esgoto, bondes elétricos, avenidas sobre pântanos aterrados. No caso de Belém, surgiram grandes obras arquitetônicas, como o Theatro da Paz, Mercado de São Brás, Mercado Francisco Bolonha, Mercado de Ferro, Palácio Antônio Lemos, Cinema Olympia (o mais antigo do Brasil em funcionamento), corredores de mangueiras e diversos palacetes residenciais no caso de Belém, construídos em boa parte pelo intendente Antônio Lemos. A construção desse espaço de cultura completava o polígono formado por Palace Bolonha, Grande Hotel, Cine Olympia, o Theatro da Paz, local de reunião da elite de Belém que, elegantemente trajados à moda parisiense, assistiam à inauguração ao som de acordes musicais, num ambiente esplendoroso, refinado e de grande animação. A abertura teve como pano de fundo a Belle Époque, ao final do apogeu econômico propiciado pelo período da borracha e o final da intendência de Antônio Lemos, grande transformador urbanista da cidade.

Fonte: Belle Époque no Amazonas e no Pará


A história passou, mas deixou seu legado de coisas boas e ruins, arquitetura, urbanização e modo de vida. Como não poderia deixar de ser, visitamos a maioria destes sítios históricos, só que de bicicleta:

Praça da república

Theatro da paz

Praça da república

Em um dos inúmeros coretos inaugurados na época da Belle Époque tropical

Praça da república

Mercado de ferro no Ver-o-Peso e ao fundo a igreja da sé

Estação das docas

Praça do Carmo, onde eu mesmo passei parte da adolescência

Calçadas que mais lembram trincheiras? Fruto da Belle Époque também


A cultura "estranha"

Uma das coisas que mais me chamou atenção foram as reações da minha esposa frente aos sólidos costumes paraenses. Quem nasceu e cresceu no sul do país acaba por estranhar muitas coisas, boas e ruins. A falta de educação no trânsito é tão grande que chega a  ser perigosa e não raramente levamos sustos de parar os batimentos cardíacos; mas do outro lado da moeda, a história cultural, a alegria do povo e a culinária mostraram-se bem interessantes.

Um "aquário" de farinha, não se vê isto em outras regiões do país

Todo o sabor dos pratos e frutas até então desconhecidos geravam um comentário: "Diferente", "forte", "não se parece em nada com o que tem lá em Curitiba", "esse pessoal não para quieto". Uma volta a noite pela cidade e mais um comentário: "Bastante opções para quem quer curtir"


Shopping mais antigo da cidade com uma arvore natalina "paraense"... Só trocaria o pinheiro por uma mangueira, mas já esta valendo

No final das contas, a constatação de que Belém tem a cultura e os costumes com raízes fortes e bem definidas, coisa que  pelo menos Curitiba (e muitas outras cidades do sul) não têm. Parece estranho, mas apesar de muito desenvolvida, a capital paranaense não conta com muitos pratos, festas ou danças típicas próprias, apenas as importadas diretamente da Europa; e ainda, com raras exceções nos separamos com uma arquitetura histórica notável. Para quem curte hábitos noturnos, também esqueça a capital. Essa falta de regionalidade do Paraná talvez seja fruto de tanta invasão europeia, onde se misturaram muitas etnias com seus costumes, mas todas ficaram bem diluídas com o passar do tempo.


Brinquedos de Miriti? Só se encontra por lá também


Cerâmica marajoara

Licores e cachaças tem de monte também

Não sou muito fã, mas também é costume ter feiras fixas a céu aberto

Garças nos fios elétricos? Chama a atenção também


XC Marajó

Apesar de querer matar a saudade de muitas coisas, o motivo principal da viajem à Belém acabou sendo participar do XC Marajó promovido pelo pessoal da EART (https://eartaventura.wixsite.com/eart). O objetivo: atravessar a baia e aportar nas proximidades do município de ponta de pedras em carácará e então, pedalar até Salvaterra, totalizando 94 quilômetros.



Embora nem todas as viagens de barco sejam iguais, quem nunca navegou provavelmente passará por várias provações, desde antes do embarque até a saída completa do  barco:


Acesso exige cuidado e equilíbrio

Esqueceu algo na bicicleta? Melhor deixar por lá mesmo

Desembarque exige o mesmo cuidado e equilíbrio

Uma observação muito válida é dizer que a travessia da baia apesar de oferecer poucos riscos, causa muito incomodo pois a maré é forte e faz o barco balançar tanto que por vezes até parece que vai virar.

Uma vez fora do barco e já com bicicletas em mãos, começa finalmente o tal XC Marajó. O terreno não tem muita variação de altimetria e apenas isto já deixa o pedal mais leve, MAS não nos enganemos, sol, vento e calor são impetuosos; alguns trechos de terra batida são compartilhados com automotores e a poeira mostra-se uma companheira assídua nos trechos iniciais.



Procurando uma sombra para descansar?

Com o passar dos quilômetros, qualquer ponto para pedir água é válido


Apesar do calor, não é possível deixar de apreciar as belas paisagens marajoaras com ciclistas inseridos nela










Cachorro preso no jardim? Não no Marajó

No inverno marajoara, alguns terrenos alagam e chegam a cobrir facilmente a altura do peito; neste período, os búfalos aproveitam para se banhar e refrescar nas águas, no entanto, ao secar a terra onde outrora era leito de um lago/rio temporário fica marcada com as pisadas dos búfalos e ai está a tal terruada 

Até as placas de trânsito são customizadas para a região

Já no meio da trilha, foi preciso atravessar um rio, mas como de costume nas trilhas da EART, não se trata de apenas carregar a bicicleta e molhar os joelhos e sim de um exercício de equilíbrio:



Doravante, decidimos continuar apenas pelo asfalto, uma alegria para minha mulher que é uma "speedera" enrustida; para mim, foi um teste de paciência e concentração, pois dali em diante, retas intermináveis com pouquíssimas variações na paisagem. Apesar do cansaço e das adversidades climáticas, finalmente chegamos em Salvaterra, a "princesinha do Marajó".

Hora ou outra búfalos apareciam na pista

Retas a perder de vista? Aqui tem sim senhor

Rota turística do queijo do Marajó? Um dia voltaremos para conhecer melhor

Quem decidir ir até Joanes vai se deparar com estas ruínas jesuítas

"Speedera" Enrustida


A procura do queijo


Pela manhã, decidimos procurar algum lugar para comprarmos o famoso e saboroso queijo do Marajó e de quebra dar uma volta pela cidade. Levantamos bem antes do café da manhã ser servido na pousada e aproveitamos para dar uma volta pela praia grande, desértica fora de época. Exuberante, afinal, como dizia o poeta Rubem Alves, praias cheias lembram bois cheios de carrapatos...



Depois de um reforçado café pra lá de paraense, com tapiocas, pães caseiros e sucos de frutas regionais, partimos em busca de queijo do Marajó. Pedalamos e pedalamos e nada de queijo, apenas placas avisando que vendiam, mas que naquele momento, nada havia disponível para a venda. Aproveitamos para pedalar um pouco mais e por que não conhecer mais a cidade?!




Após a busca do queijo, nos dirigimos até a pousada dos Guarás, de onde tradicionalmente sai o ônibus carregando as bicicletas e os ciclistas de Salvaterra até o porto do Camará de onde se realizam as travessias até a capital, Belém


Claro que tinha que rolar uma foto com um búfalo


E a volta?


Indo direto ao ponto, foi muito tranquila e sem maresias (nem parecia a travessia para Belém).


Relieve



Algumas considerações


Depois de alguns anos afastado de Belém, apenas pude relembrar os vários motivos que me fizeram decidir sair e além disto, pude ainda constatar que apesar de grupos de ciclistas muito fortes e unidos, a cidade das mangueiras está anos-luz de ser um lugar atraente para um cicloviajante.

Atuar como uma espécie de "guia turístico" para minha esposa foi bastante revelador, afinal, coisas banais para mim por vezes eram surpreendentes aos olhos dela e detalhes que por décadas passaram desapercebidos por mim, receberam luz com as observações dela. É bem como dizem alguns pensadores, nos descobrimos mesmo é na relação com o outro...

E quanto aos recursos técnicos, bem... minha Antares segue muito firme, apesar de surrada e a Rava Nina mostrou-se tão boa quanto a Antares. Já os acessórios que utilizamos para viajar seguiram exibindo um ótimo custo-benefício, com única exceção do novo malabike da Alpamayo que só nos deu dor de cabeça, mas isso já é assunto para outro post.


Outras fotos do passeio

































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