Cicloturismo no vale europeu catarinense
Depois de muito planejar, adiar, adiar e adiar, me apareceu finamente a oportunidade de realizar uma boa viagem sob duas rodas; mas não uma voltinha qualquer, uma viagem daquela sempre sonhada, da qual o viajante que volta não é o mesmo que partiu. Com tempo razoável disponível, dinheiro (sempre curto mas desta vez suficiente hehe), equipamentos básicos e um pouco de experiência em viagens curtas, fiquei em dúvida sobre qual percurso faria; ao mesmo tempo, meu coração estava querendo dar uma voltinha pelo sul do país: culinária, um amor perdido, frio, biodiversidade e paisagens diferentes das minhas, baixa temporada, e simples curiosidade me direcionaram para Santa Catarina, mais especificamente para a região conhecida como vale europeu catarinense.
Para quem jamais ouviu falar do vale europeu catarinense, trata-se de uma região ao norte do estado de santa catarina caracterizada pela intensa colonização européia durante a fundação das várias cidades que compõem o vale; para se ter ideia, em alguns locais as crianças brincam falando alemão ou italiano, isso para não citar a culinária e a arquitetura europeias também; sem dúvidas um passeio imperdível que em teoria me proporcionaria boa parte do que estava buscando. Pensando como eu, só que anos antes, o clube de cicloturismo do brasil juntamente com os moradores, prefeituras e o governo estadual (que inveja...) idealizaram o circuito catarinense do vale europeu para cicloturistas; há também percursos para mochileiros, andarilhos, observadores de aves, carros 4x4 e o gastronômico, para quem quer somente encher a barriga.
Comida boa, culturas diferentes à conhecer, boa estrutura, percursos mapeados, vontade transbordando, me restou apenas rever tudo o que já havia planejado para uma cicloviagem.
Antes de partir
Aproximadamente dois meses antes de viajar, passei a pesquisar e a me preparar, como de praxe na era digital, a internet fez grande parte do trabalho e assim, trajeto, transportes, hotéis, e equipamentos puderam ser pesquisados sem muitos problemas e além disso, realizei um preparo físico "caseiro" por assim dizer:
Trajeto
O trajeto é dividido em duas partes principais, a parte baixa (Timbó, Pomerode, Indaial, Rodeio) e a parte alta (Dr. Pedrinho, Alto cedros, Palmeiras), quem quiser ou não aguentar, pode fazer apenas a parte baixa, uma vez que a parte alta é a que mais exige esforço e experiência (é onde tem mais paisagens bonitas também). O clube de cicloturismo sugere 7 dias para a realização do percurso, dividindo os trechos em dias e cidades, então temos algo do tipo:
1º dia: Timbó - rio dos cedros - Pomerode: 45 km com Ascenção Total de 510 metros |
2º dia: Pomerode - Timbó - Indaial: 40,1 km com Ascenção Total de 520 metros |
3º dia: Indaial - Ascurra - Rodeio: 27 km com Ascenção Total de 170 metros |
4º dia: Rodeio - Benedito novo - Dr. Pedrinho: 41,1 km com Ascenção Total de 1120 metros |
5º dia: Dr. Pedrinho - Alto cedros: 40 km com Ascenção Total de 820 metros |
6º dia: Alto cedros - Palmeiras: 41 km com Ascenção Total de 840 metros |
7º dia: Palmeiras - Benedito novo - Timbó: 53 km com Ascenção Total de 670 metros |
Transportes
Morando muito longe do destino, optei por me aproximar de avião, o que me trouxe dois problemas mais imediatos, o preço da passagem aérea, que me deixou neurótico vendo todos os dias e horas as promoções das linhas aéreas; e o transporte da bicicleta, afinal, obrigatoriamente ela teria que ir junto, foi então que adquiri um "malabike" da ararauna, optei pela marca pois já possuía algumas bolsas e gostei da qualidade dos produtos. (ainda pretendo realizar um pequeno "review" deste malabike, então não irei me aprofundar)
Malabike ararauna |
Malabike ararauna |
As linhas aéreas aceitam transportar bicicletas, porém, as mesmas devem estar embaladas, sem pedais, pneus vazios, com a roda dianteira desmontada e com o guidão alinhado ao quadro; mas pensam que alguém no aeroporto ou no guichê da linha me informou ou se certificou destas condições?! Nada, trataram apenas de ver o peso e o tamanho da mala; pela LATAM, fui informado que a bagagem estaria fora dos padrões (acima de 1,50 metros) e por isto, precisei pagar o excedente no valor de R$ 110,00; já pela GOL, a bicicleta foi apenas pesada e embarcou sem nenhum custo adicional; em ambos os casos, a mala foi tratada com muito cuidado e ao final da viagem, precisei pegar a bicicleta em local separado das demais bagagens. Uma curiosidade é que pela LATAM, apenas a bicicleta pesou pouco mais de 17 quilos (ah uma dieta viu...), já pela GOL, pesou os mesmos 17 quilos, porém, com as garrafas cheias (esqueci mesmo) e com todas minhas ferramentas e capacete dentro do malabike.
Desci em Curitiba (a história de amor perdido me levou até lá, mas não vem ao caso), e então, viajei de ônibus até Timbó, onde começa o percurso de cicloturismo do vale europeu, o malabike foi aceito sem problemas pela empresa catarinense, que aliás, me deixou arrumar a mala no bagageiro e ainda cuidou para que a mesma não corresse durante a viagem, muito bom mesmo; a passagem custou R$ 47,00 e pôde ser comprada online pelo site da rodoviária de Curitiba.
Hotéis
Mais ou menos quinze dias antes de pegar o avião, já estava com minha lista de hotéis reservados, a maioria pelo booking.com (o qual felizmente não decepcionou), foram eles:
Timbó park hotel: Fica bem próximo do início/fim do percurso, possui excelente sinal de wifi, oferecem estacionamento para quem vai realizar o percurso e buscar o carro depois (não sei o preço e condições), oferecem aluguel de bicicleta, café da manhã bom. Diária a R$ 155,00
Casa branca boutique: Chiquérrima, possui até um imenso jardim que dá para fazer trilhas à pé, tem café da manhã bem regional, bom sinal de wifi, quartos aconchegantes e biblioteca; a recepção do hotel abraça o turista e apresenta com muitos detalhes a cidade de Pomerode. Diária a R$ 180,00
Hotel Indaial: Hotel básico, não tem muito o que falar, quarto e banheiro limpos e funcionais, o wifi é bom, mas cai vez ou outra, nada alarmante; a mancada do quarto onde fiquei foi a presença de apenas UMA tomada, precisei reveza-la para recarregar a câmera e o celular; café da manhã incluso e muito gostoso (compensou a falta de tomada). Diária a R$ 60,00
Hotel dona Hilda: Hotel também básico e funcional, mas com tomadas de sobra, wifi muito bom; o verdadeiro diferencial deste lugar é a comida maravilhosa preparada pela dona Hilda, melhor janta e café da manhã do meu trajeto, ambiente muito caseiro. Diária a R$ 80,00
Pousada da família Duwe: Pousada bem diferente das demais, foi a única que não reservei pelo booking, a negociação toda foi feita a moda antiga, telefone. É preciso atravessar o rio para chegar; tem a opção de café da tarde e levar lanche para o dia seguinte; o próprio Sr. Raulino Duwe vai nos buscar do outro lado do rio e de lá já vai batendo papo, pousada simples e funcional, com wifi muito bom, vista espetacular do céu e do rio. Diária a R$ 125,00
Total: R$ 755,00
Equipamentos
Como concebi minha querida antares para trilhas de terra e ocasionalmente viagens mais longas, já tinha muito do aparato que precisaria para encarar o vale europeu; decidi ignorar os conselhos de viajar ao vale na época das flores, dos eventos e do "calor", fui no inverno mesmo que aliás, também marca a baixa temporada, frio e pouca gente, quase um candidato à lich king. No canal do youtube "pedaleria", assisti ao vídeo pedalando no frio, no qual o Edu Capivara dá preciosas dicas; logo fui atrás de segunda pele e corta vento, para minha surpresa encontrei o conjunto de segunda pele a aproximados R$ 200,00 com luva, camisa, calça e balaclava; já a jaqueta corta vento saiu completamente do meu orçamento e acabei não levando.
Além do malabike e das roupas de frio, é preciso de alforjes para levar as coisas...por sorte já tinha a super mochila/top bag da ararauna (Um pouco sobre: Mochila - top bag ararauna 30L); foi preciso também uma bolsa para transportar mais gentilmente minha NEX 3 (super básica, mas é o que temos), também já possuia a tal "bolsa para fotógrafos" da ararauna; diga-se de passagem, que fique bem claro que não ganho meio centavo pela propaganda...(mas ararauna, precisando...estamos aí...hehe). Uma sugestão interessante de muitos cicloturistas é pintar a bicicleta para deixa-la menos chamativa, segui o conselho e pedi que pintassem minha antares de vermelho, a ideia era mais um vermelho sangue ou quase vinho, mas o pintor me sugeriu o vermelho barroco e ficou assim:
Antares de cara nova com top bag e bolsa de guidão, detalhe do malabike enrolado acima da mochila |
De ferramentas e equipamentos de segurança nem deveria comentar, pois são sempre obrigatórios, é o peso da segurança afinal. A lista de equipamentos ficou mais ou menos assim:
- Mochila/top bag 30L
- Malabike
- Bolsa de guidão 9L
- 2 caramanholas de 700 mL
- Bomba de ar
- Ciclocomputador
- Lanterna traseira
- Lanterna dianteira
- Espelho retrovisor
- Câmara reserva
- Chave canivete com sacador de corrente
- Chave de boca tamanho 15
- Chave philips
- Lubrificante de corrente
- Reparo rápido para pneu
- Celular com mapa do trajeto
- Câmera sony nex 3
- Leitor de ebook kobo
- Carregadores de celular, câmera, lanternas
- Capa de chuva para as bolsas
- Poncho para o ciclista =P
Em uma próxima viagem devo acrescentar uma flanela e um bom desengraxante também.
Preparo físico
Aqui um tópico que não vejo necessidade pois é óbvio que devemos nos preparar antes, mas de tanta gente me perguntando como, ai vai. Treino de no mínimo 30 km duas a três vezes na semana por dois meses com uma bicicleta de "ferro" (como dizem os "cabocos da terra" kkkk); na última semana passei a testar a bicicleta carregada com os alforges nos arredores de casa, apenas para ter segurança no sistema de fixação da mochila. Já pedalava antes e não perdia muita trilhas, para quem vai começar do zero, é mais complicado, mas acredito que funciona também. É claro que devem aparecer mil e uma maneiras melhores de treinar, não sou expert no assunto, mas o importante é que estou aqui para contar a história do que fiz!
Bagagem
Sentido figurado ou não, aqui temos muito do que tratar. Com muito planos de onde ir antes e depois do vale europeu, acabei exagerando nas roupas, ao final, descartei duas camisas e uma calça jeans para aliviar o peso, e por pouco não me livro de mais uma ou duas camisas. Depois de todo o sacrifício de carregar este peso todo, percebi que além do uniforme de ciclismo (sapato, meia, segunda pele, luvas, camisa, capacete), precisei apenas de UMA calça, QUATRO camisas e UM par de meias extras mesmo indo e voltando de Curitiba (não contei as cuecas...kk), então, fica minha experiência negativa como conselho e dica para quem é mais inexperiente.
Que exagero...aqui esqueça o dito popular de que é melhor pecar por excesso do que pela falta |
Timbó a Pomerode
E lá vamos nós |
Sai do hotel muito feliz, finalmente chegara a hora de realizar um sonho, mas ao mesmo tempo estava bem receoso, não gostaria que me roubassem as coisas e por isso pedalei com certa cautela neste dia, a cada pessoa em minha direção, meu coração disparava...bagagem que levei direto de Belém, cidade sem lei. Com o passar dos quilômetros fui notando casas sem muros, sem grades, bicicletas sem cadeado, pessoas com celular nas ruas, então fui relaxando até me concentrar apenas em pedalar e tirar fotos; acreditem se quiser, em Belém não existe nada disto sem que um meliante apareça; como citei anteriormente, excesso de bagagem é sempre prejudicial em uma cicloviagem.
Poucos metros pedalados e ia ficando maravilhado com casas sem pichações e bem arquitetadas, calçadas limpas e regulares, arvores e mais arvores floridas...coisas simples, mas que adivinhem...Belém não tem também...Parava, tirava foto e ficava feliz, pedalava mais alguns metros e outra cena exótica aos meus olhos, e assim fui levando este primeiro dia, lento, porém explorador por assim dizer; é como nos conta Saramago em sua viagem a Portugal: "É certo que, aos olhos desabituados de arquiteturas sacras rurais, tudo ganha facilmente foros de maravilha".
Ponte pênsil, cartão postal de Timbó |
Casas sem grades, sem pichações e sem muros |
Os primeiros quilômetros não despertam tanta aventura, mas é de impressionar como poucos os quilômetros pedalados já nos fazem sair completamente da paisagem urbana, algumas vezes até voltar o tempo. Outra coisa muito chamativa foram as serras demais próximas da estrada e cobertas de neblina, mais uma vez segui o ritmo do dia: parar, tirar foto, admirar e prosseguir, tudo muito surreal para quem cresceu em terras "calorentas". Após alguns poucos quilômetros chegamos bem no início de Rio dos Cedros, e neste ponto é bom comprar lanches e reabastecer os líquidos (caso não o tenha feito ainda), pois doravante não há mais comércios para tal finalidade até chegar em Pomerode.
Serra com neblina envolvente |
Parece que fiz uma viagem no tempo |
A primeira grande subida do circuito fica um pouco antes de cruzar a fronteira com Pomerode, ela já assusta, mas dá pra levar de boa; aqui é importante perceber se o peso da bicicleta com a bagagem está demais ou na medida porque apesar de forte, garanto que esta primeira subida não faz jus ao restante do circuito. Depois de tanto subir, chega a hora de descer, e que descida, a 50+ km/h quem não gosta? Os freios sem dúvida! Esteja com eles funcionando. Após chegar de fato em Pomerode, pedalamos pela cidade e ai mais uma vez...uma rua bela aqui, uma casa bonita ali, uma arvore frondosa aculá...
A placa já diz...subida adiante =P |
A subida mais forte do dia, aqui estava na metade, mas o carro lá em baixo já dá a ideia da dimensão da coisa |
Primeiro contato com Pomerode, lindo |
Quando planejei minha viagem, não cruzei o mapa de localização dos hotéis com o mapa do circuito e assim, depois do término do primeiro dia, ainda precisei pedalar aproximadamente 10 km para chegar até a pousada casa branca, o que me fez atravessar do início ao fim a parte urbana de Pomerode...mas não reclamei, aproveitei para curtir, cidade muito bela por sinal, valeu cada giro no pedivela e olha que era domingo a tarde e boa parte das coisas estava sem funcionar.
Pomerode a Indaial
Cenário do filme "os outros" |
Paraíso das tortas |
Cedo e já estava a todo vapor |
Uma das desvantagens de se levantar muito cedo é que continua tudo fechado até "tarde", chocolateria, docerias, cervejarias, oficinas, casa de tortas...tudo isto deixei de conhecer, e aqui ficou mais uma lição já para a próxima viajem, ser mais turista e menos ciclista ao atravessar um lugar agradável. Apenas a nível de curiosidade, a farmácia estava em pleno vapor, chega a ser impressionante como elas não fecham em lugar nenhum não importando as condições.
Basicamente o início do dia é subir a serra acompanhado deste riacho |
Após sair da região urbana, logo nos deparamos com subidas "infinitas enquanto duram", mas estas ao menos eram acompanhadas de muitas quedas d'água fazendo aquele relaxante som de água fluindo; é importante dizer que as subidas mais fortes durante o dia se encontram logo no início. Várias vezes ao longo do caminho pedalamos no alto da serra, e conseguimos ver as coisas bem pequenas lá em baixo, mas isto é apenas um aviso para tomar cuidado, uma queda pode ser muito problemática.
Depois de se chegar em uma rodovia asfaltada, é bom reabastecer e preparar o estomago, pois deste trecho em diante, não tem mais nada até a chegada em Indaial. É bom tomar cuidado também com funcionários da prefeitura nivelando e tapando os buracos das estradas de terra, no dia em que passei no trecho, haviam tratores, ferramentas, pessoas e muitos pedregulhos afiados pelo caminho, ainda assim fiquei boquiaberto de tal manutenção, pois adivinhem...Belém...também não tem disso. Sem muita dificuldade chega-se em Indaial, e desta vez por sorte o hotel Indaial é bem próximo do início do dia seguinte.
Prefeitura nivelando a estrada de terra, que inveja |
Chegando à Indaial |
No final deste dia senti dores pra lá de intensas no joelho direito, provavelmente pelo excesso de peso na bicicleta, já havia iniciado o circuito e gostaria muito de completá-lo, comecei a ficar preocupado com a possível frustração. Devido a curta distancia que precisaria percorrer no dia seguinte, decidi prosseguir mesmo com dor.
Indaial a Rodeio
Poucas coisas são legais neste trecho, a falta de subidas fortes e o rio morto são elas, o restante do dia é marcado pelo tráfego de veículos, pela falta de mudanças na paisagem e no meu caso, dores absurdas no joelho, felizmente é o trecho mais curto do circuito e antes mesmo da hora do almoço, chega-se em Rodeio.
Dia de seguir as setas amarelas |
Acostamento...? Na saída de Indaial, esqueça |
"Margeando" o rio morto |
Chegando em Rodeio |
Graças ao tempo extra pude visitar o restaurante do Souza (fica do lado do banco do Brasil) e me empanturrar de massas até passar mal, claro que precisei descansar depois, aproveitei para resolver o dilema em que me encontrava: Subir até a próxima etapa ou seguir de volta até Timbó para dar a expedição como finalizada.
Para quem quiser fazer apenas a parte baixa do circuito, aqui começa o 4º dia que levará até Timbó, para quem prosseguir, o 4º dia começa bem mais adiante |
Depois de quase uma hora preguiçosamente descansando em um banquinho, me senti cheio de energia para prosseguir, mas antes passei em uma bela panificadora e me precavi de lanches caso precisa-se; também pesquisei um "plano de fuga" para caso quando chegasse ao final do dia com tanta dor que ficasse impossível continuar; ao contrário do que imaginava, Dr. Pedrinho não é uma cidade tão isolada, é possível voltar por asfalto que é muito menos cansativo ou arrumar um ônibus ou van que é bem mais cômodo.
Mais um lugar deixado para trás por causa da pressa |
Rodeio a Dr. Pedrinho
Nesta placa deveria ter as inscrições da entrada do inferno de Dante...kkk |
Dez quilômetros de subidas sofridas e ininterruptas, assim começa a subida para Dr. Pedrinho, basicamente tudo o que foi subida nos 3 dias passados estão juntos nesta única viagem, é bom preparar o psicológico. Nem tudo é martírio, o mais legal de subir uma serra é que vez ou outra é possível olhar por entre as arvores e ver nosso progresso.
Cidade de Rodeio ficando cada vez menor |
Um morador resolveu enfeitar o caminho com várias esculturas angelicais e ano após ano, mais e mais estátuas pelo caminho, o resultado foi a criação do vale dos anjos. Neste dia muita gente estava subindo de moto para tirar fotos com o cristo, eu já exaurido das forças usei como desculpa que esperaria todos saírem para tirar uma foto "limpa".
É tanta subida que até os seres angelicais vão ficando para baixo.
Após 3 horas e poucos minutos consegui vencer o morro do Ipiranga com suas subidas que pareciam não acabar mais; no topo uma surpresa, encontrei a maior tirolesa das Américas, sabia que ficava pela região, mas não imaginava passar por ela, aproveitei para reabastecer a água e descansar um pouquinho.
Para quem quiser, deixo a dica que no mesmo local da tirolesa funciona um hotel e um restaurante, mas estes só abrem aos finais de semana, R$ 95,00 a tirolesa e R$ 60,00 a R$ 100,00 a diária do hotel. Como ainda estava com muita luz, resolvi prosseguir sem sequer olhar as horas.
Desvio para a cachoeira salto do zinco |
Quando consegui chegar na placa informativa sobre a cachoeira salto do zinco estava tão cansado que nem tive ânimo para um desvio de 16 km e mais um monte de subidas para visualizar a cachoeira, tolice claro. Após pedalar mais alguns quilômetros e encarar mais algumas subidas passei a notar uma luz mais bonita para as fotos e as sombras mais alongadas, o dia estava chegando ao fim e isto para mim significava que precisava me apressar.
Após chegar em um vilarejo em Benedito Novo, decidi guardar de vez a câmera neste dia e prosseguir sem distrações, mas...é difícil não se interessar pela bela arquitetura; uma igreja totalmente em enxaimel, a única no Brasil, ainda seguindo tradições antigas como o cemitério ao lado e seus túmulos voltados para a direção do nascer do sol, reza a lenda que no dia do juízo final deus virá daquela direção e assim os mortos serão os primeiros a vê-lo e os primeiros a serem julgados...
Já com o céu escuro e apenas com uma lanterna para iluminar o caminho cheguei à entrada de Dr. Pedrinho, mas o centro da cidade fica ainda muito longe do pórtico de entrada, que desanimo, o jeito foi continuar, depois de mais subidas intensas e mais escuridão, parei para tomar água, então olhei os céus e tive um daqueles vislumbres dos quais fechamos os olhos e lembramos muito emocionados mesmo anos depois, pude ver parte da via láctea nos céus; estava fascinado e determinado a registrar o momento, me arrependi amargamente de não possuir uma grande angular das boas e um tripé qualquer, não levei o meu pois achei que seria fácil encontrar um pelo sul do país...Improvisei utilizando a bicicleta como apoio, mas é claro que não é a mesma coisa...ainda tremeu um pouquinho.
Maravilhado com os céus, esqueci dor e cansaço, e assim cheguei entorpecido à Dr. Pedrinho, quase 13 horas depois de sair de Indial, tratei logo de tomar água e comer algo; na lanchonete que entrei, vi uma mesa maravilhosa cuja a simples contemplação já me animou.
Centro da mesa de vidro "recheado" com café |
Na pousada da dona Hilda descobri que serviam janta e então por lá mesmo fiquei, comida caseira deliciosa preparada pela própria Hilda...humm...me deu fome só de lembrar, vale cada centavo, recomendo sem ressalvas. Uma coisa notável foi a queda de temperatura conforme subia o vale; na manhã seguinte, muita neblina envolvia parte da cidade, meu estomago queria apenas comida e mais uma vez o café servido pela dona Hilda se mostrou maravilhoso e comi até chegar ao limite, a dor no joelho amenizou muito com uma excelente noite de sono e assim, sem muita frescura, segui adiante.
Acordando quase nas nuvens |
Dr. Pedrinho a Alto Cedros
Aqui, um breve esclarecimento para quem não conhece o vale, muita gente acha que alto cedros e palmeiras são cidades, mas na verdade são regiões anexas a rio dos cedros, então, muito, mas muito cuidado ao reservar os hotéis daqui em diante, pois rio dos cedros propriamente dita fica a quilômetros de distância de alto cedros ou palmeiras. Outro aviso é que todas as cidades até então possuem bancos ou estabelecimentos que aceitam débito/crédito, doravante, não tem mais disso até a chegar em Timbó.
Diferente dos dias anteriores, é possível optar entre dois caminhos para chegar em alto cedros; a via cachoeira véu de noiva, que seria o rumo que escolhera durante meu planejamento estava interditada por obras da prefeitura =/, o jeito foi seguir a rota alternativa via pedra branca, uma pena pois queria muito ver a queda d'água de perto. Antes de partir ainda reencontrei um casal de cicloturistas que estavam percorrendo o circuito assim como eu (havíamos nos encontrado no final do trecho que vai para Indaial, mas logo nos separamos), decidimos seguir viagem juntos.
O início deste trecho já mostra muita beleza, e como não poderia faltar, subidas e mais subidas, desta vez mais íngremes que nos dias anteriores.
Sinta a inclinação no início das subidas |
De tanto subir, chega uma hora em que precisamos descer e...que descida, uma das maiores da minha vida e acredito que a terceira maior do circuito inteiro.
Topo da serra, poucos metros antes de iniciar a descida |
Poucos minutos depois, imersos na mesma paisagem que estava minúscula no topo da serra |
É claro que depois de descer, precisamos subir de novo, o que mais chamou a atenção foram as áreas de deslizamento, imensas, muito provavelmente por causa da excessiva substituição da mata nativa por eucaliptos.
Talvez tenha sido a agradável conversa ao longo do dia, nem senti o tempo passar e quando nos espantamos...final de percurso. Infelizmente o casal tomaria a direção da direita rumo à pousada linderhoff, enquanto eu iria para a esquerda ficar na pousada Duwe e assim, me desencontrei de meus colegas.
Como citado, a pousada dos Duwe fica cruzando o rio, o combinado é esperar neste ponto, do outro lado do rio alguém vê e atravessa com o barco, não demora muito e logo chega-se à pousada.
Há a opção de café da tarde por R$ 15,00, isolado da civilização e semimorto de fome, aceitei a proposta sem pensar duas vezes, recomendo a limonada suíça e o pão integral com linguiça de Blumenau, deliciosos e conseguem "forrar" o estômago. A jantar estava inclusa na minha diária.
Mesa do café |
Depois de algum tempo o Sr. Duwe começa a puxar conversa, pelos relatos que li anteriormente, parece que ele curte muito uma prosa. De uma conversa aqui e outra ali, o Sr. Duwe diz: "eu já um senhor de idade e quase sem estudos, o que iria fazer na cidade? Nada, pelo menos aqui tenho meu negócio e faço meu sustento"; e logo em seguida: "As grandes empresas não querem saber dos funcionários, são todos peças que quando dão problema basta pagar e contratar outro e assim vão sugando os jovens". Provavelmente estive diante de alguém que conseguiu fugir do sistema e ficou traumatizado; me pergunto se um dia serei assim. Após uma noite de sono muito regenerativo, o café da manhã repete as gostosuras do café da tarde e assim na manhã seguinte feliz da vida e de estomago super cheio; a Sra. Duwe mostra um livro de visitas e pede para eu assinar antes de atravessar o rio. Despedidas feitas, é hora de prosseguir.
Sr. Duwe retornando para sua pousada |
Alto cedros a Palmeiras
Foi o dia mais frio de todo o circuito, alguns momentos nem sentia meus dedos para fotografar, mas ainda estava dentro do tolerável, anda que um par de luvas não resolvesse. O trecho começa rodeando o rio formado pela barragem, mais uma vez o cenário mostra-se belíssimo com muita subidas sinuosas, mas já nem ligava mais, havia me acostumado aos desníveis.
O dia transcorre de maneira pacata, sem nenhum sinal de carro ou alma viva, apenas o rio, o vento e os pássaros fazem barulho, os céus são marcados por diversos traços brancos retilíneos, não sei o que são exatamente, mas chamaram minha atenção pela quantidade. Segundo o clube de cicloturismo, este é o trecho mais isolado de todo o circuito.
Em terra o que me chama atenção é um parque infantil no meio do "nada", mas como de praxe, nenhuma alma viva, ninguém e logo trato de seguir adiante.
Depois de longas subidas, paro para descansar e noto o cassete sujo da antares, empoeirado apenas nas marchas mais pesadas, não tem como negar, são muitas subidas e esta é apenas mais uma das comprovações...
Perdi a cachoeira salto do zinco e a véu de noiva, não perderia a próxima pelo caminho, a formosa; de antemão sabia que teria que desembolsar R$ 5,00 para entrar, no início resisti, mas já havia perdido as outras e decidi que não perderia mais esta, além do mais, o desvio é de apenas 2 km (ida e volta) e a formosa é "dois em um", existe a queda grande a queda pequena.
Queda grande |
Queda pequena |
Voltando ao trajeto, logo se chega a Palmeiras, vilarejo muito pequeno, mas ainda mais civilizado que Alto cedros. Parei para almoçar (e que almoço!!!!) ao lado do mercado, olhei as horas e me bateu a dúvida se deveria continuar ou arrumar um quarto para pernoitar, optei por seguir adiante e economizar uns trocados. Para quem tem interesse, ao lado do hotel existe uma área de Camping (não vi o preço).
Palmeiras a Timbó
Muito da paisagem do trecho anterior é repetido, lagos, rios, fazendas, tudo muito agradável aos olhos, apesar do sol aparentemente forte, o frio fazia o desejo de mergulhar nas águas ir embora.
As coisas mudam de cenário às proximidades de Benedito Novo, onde (depois de muito subir) chegamos ao ponto onde há a maior descida de todo o circuito, são minutos descendo a mais de 60 km/h, muito excitante depois de tantas subidas.
Neste ponto prepare-se para encarar a maior descida do circuito |
Depois da descida fantástica, o trajeto fica plano e é possível pedalar com mais calma e menos esforço, para variar, acompanhando um bom pedaço do rio.
É claro que os idealizadores, muito sádicos por sinal, guardaram uma "pequena" surpresa para o final, a subida mais íngreme do circuito fica pouco depois da maior descida, que broxante.
Início da mais íngreme subida |
No topo é possível fazer um desvio para tomar um banho em uma queda d'água, mas o tempo estava escurecendo e não gostaria de atravessar a noite fria no meio do mato apenas com uma lanterna; segui adiante após contemplar uma última vez o vale do topo da serra.
Pombos e galinhas se recolhendo é sinal de final do dia |
Última vista do alto para o vale |
De Benedito novo até Timbó tem muito chão, mas é praticamente todo no acostamento do asfalto, basta pedalar com cautela e atenção. Mais uma vez já bem escuro, cheguei ao destino planejado do dia. Assim como em Dr. Pedrinho, esqueci a fome, a dor e o cansaço, depois de realizar um sonho, quem é que ligaria para tais adversidades afinal de contas?
Final de viagem
O que deveria ser feito em 7 dias, por motivos mais pessoais fiz em 5 dias, mas se arrependimento matasse...deixei de conhecer diversos lugares ou de provar pratos saborosos por conta desta pressa, mas...
Mais uma vez, como diz Saramago no seu livro "viagem a Portugal":
"O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já."
Fonte: Viagem a Portugal, 2ª ed., Lisboa, Editorial Caminho, 1984
Mal posso esperar para o tal retorno, em épocas diferentes ou não.
Dados do GPS
Bug no tempo total =/ |
Mais fotos do circuito
Ponte coberta, muito comum na região, tradição européia |
Muitas fazendas ao longo do caminho, esta aqui com uma vaca curiosa a me acompanhar |
Casas no estilo enxaimel, mais uma tradição européia |
Ciclofaixa idêntica a de Belém, mas sem carros ou entulhos em cima |
Muitos ninhos ao longo da zona rural, lindo de ver apesar de desprotegidos |
Cachorrinho pedindo para virar cicloturista, garoto esperto |
Cultura da bicicleta desde o maternal |
Ruas de Indaial, sem buracos, sem desníveis nas calçadas, sem sujeira acumulada nas ruas (adivinhem..Belém tem tudo isso) |
Ponte de Ascurra interditada para obras, felizmente estava de bicicleta e passei sem maiores problemas |
Hotel da tirolesa MK2 |
Pousada da família Duwe, ainda em construção |
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