Farmacêutico marajoara em Curitiba

Jardim botânico, cartão postal de Curitiba

Exatamente um ano se passou desde que abandonei meu berço em terras amazônicas para respirar novos ares em um lugar onde jamais imaginara pisar, Curitiba. Apesar de nunca sentir uma conexão tão profunda com o meio que me cercava, foi árdua a tarefa de deixar tudo para trás, foram muitas as noites chorando já da saudade do antes de partir, algumas lágrimas derramadas com a certeza de nunca mais ver ou sentir o calor de algumas companhias. Mas... o desejo do viajante sempre foi um forte traço presente em mim.

Ourinhos/SP em meu último dia de viajem

Na bagagem, tudo o que coube no porta-malas de um carro popular; é estranho que depois dos trinta e poucos anos, tudo o que tinha em termos físicos se resumia a pouco mais de 56 litros; em expectativa, acabei me apegando a muito mais que deveria. Assim, deixei Belém, com dor dilacerante no peito, muita confiança em minhas próprias habilidades e como não poderia deixar de ser, muitos sonhos.

Foram cinco dias cruzando o país, encantos que apenas a alma do viajante, e não o turista tem o direito de vivenciar: paisagens, sabores, sensações, alegrias, tristezas, reflexões, curiosidades... Bem, foram os melhores cinco dias da vida de um homem de meia idade, infelizmente...foram apenas cinco, bem que os antigos já diziam, a pressa é inimiga da perfeição.

Mas, voltando ao presente, muitos dos que ficaram em Belém, me perguntam como estou, se foi difícil, se o sul e mais especificamente Curitiba são o que a propaganda diz; de acordo com minhas expectativas de vida e profissionais, tentarei resumir minhas impressões da "melhor capital para se viver no Brasil" segundo sabe-se lá qual fonte.

Tenho a obrigação de dizer que em termos de estrutura e serviços, sim, Curitiba é muito superior à qualquer cidade do norte do país. É possível usar o celular no ponto de ônibus por exemplo, só quem morou no norte/nordeste do país vai me entender plenamente. É muito mais fácil e barato pegar um ônibus ou um avião para qualquer lugar, os fretes são mais baratos, a maioria das calçadas está inteira, o turismo é tão bem desenvolvido é possível afirmar que existe a cidade para os turistas e a cidade para os habitantes. Escolas de música? Pois é, tem de monte e a preços acessíveis (a partir de R$ 55,00/mês já dá pra aprender algum instrumento), as ruas são bem limpas, os ônibus são pontuais e possuem integração em terminais e por ai vai, coisa de primeiro mundo mesmo.

Porém, o que esta cidade tem em estrutura, carece de igualdade social. Em muitos lugares é possível encontrar dependentes químicos e pedintes aos montes, Curitiba tem um problema sério com drogas e tráfico; mas ai você me diz, o Rio isso e São Paulo aquilo...Mas nestes locais os moradores estão cientes e assumem essa grande falha, já o Curitibano prefere fingir que está tudo bem e acaba ignorando o fato, o exemplo mais marcante disso são alguns pontos turísticos com jardinagem impecável, mas cercados de dependentes e pedintes; ou seja, são programados a jogar a sujeira para de baixo do tapete e colocar algumas flores em cima. Isso para nem citar a quantidade absurda de apartamentos e casas maravilhosas, vazios por não ter alguém que possa pagar os aluguéis, há muita gente sobrevivendo em quartos e pensionatos do que morando dignamente. Aliás, é importante dizer que os aluguéis são bons neste pedaço do Brasil, o difícil mesmo é bancar o condomínio, é muito comum encontrar um apartamento bem localizado, grande e com o condomínio no valor do aluguel. Triste, mas essa é uma tendência nacional do mercado imobiliário.

Como é ser farmacêutico em Curitiba?

Na área de dispensação, não é difícil arrumar emprego, o que não necessariamente é algo bom, pois abre espaço pra muitos sub-empregos, eu mesmo consegui me empregar em menos de dez dias de procura. Como alguns colegas dizem por aqui, basta enviar o currículo pela manhã e a tarde já estão ligando para uma entrevista, PORÉM, o estado do Paraná tem muitas pegadinhas de mal gosto e pouco respeitosas:

• Piso muito abaixo da média. em números e sem frescuras, na região norte, um farmacêutico ganha entre R$ 3200,00 a 4500,00 (sem adicional de gerência). No meu caso, ganhava R$ 3400,00 em média para trabalhar 6h/dia enquanto que no Paraná, só se paga o piso que até então está em R$ 3104,00 para 8h/dia. Apenas este fator já desanima qualquer um, e se comparar salários de gerentes, ai o negócio fica pior, por aqui, um gerente recebe por volta dos R$ 4500,00, enquanto que em Belém, ficava pra mais de seis mil segundo relatos.

• Não cumprem convenções coletivas de trabalho. Adicional de responsabilidade técnica? Só no papel, redes de renome não pagam nada por responsabilidades a mais; algumas farmácias chegam a pagar adicional de responsável de loja, ou seja, dão muito mais valor ao lado comercial do que ao técnico. Isso pra nem citar as condições insalubres das farmácia, como ausência de bancos, estresse de lidar com público, risco de assaltos, não pagamento de horas extras...Mas nada está tão ruim que não dê pra piorar, na última negociação sindicato x patronal, até a obrigatoriedade de água filtrada foi questionada.

http://sindifar-pr.org.br/negociacoes-coletivas-2018/

• Não é fácil ter benefícios. Plano de saúde, vale alimentação/refeição e plano odontológico até existem, mas são escassos.

• Não querem que o funcionário se desenvolva. Fui ameaçado de demissão algumas vezes pelo fato de começar a cursar uma pós graduação em que precisaria ser dispensado 4 horas antes do meu horário uma vez ao mês. Outras redes negaram entrevista de emprego pelo mesmo motivo.

• Horários ruins. Aqui não se trata de um fenômeno exclusivo da região, mas é bem difícil arrumar um emprego com horários compatíveis com uma vida social. Dúvida? Tente manter uma vida trabalhando das 13:00 as 23:30 com uma infinidade de horas de intervalo que mais atrapalham do que ajudam.

• Descumprimento descarado das leis. Um ponto muito polêmico, mas... tão cotidiano que chegam a fazer até piada de quem faz certo, imagine você lá pelo final do mês, resolve comprar uma caixa de um medicamento qualquer que deve durar para 30 dias de tratamento, mas ai você vê que o produto vence antes de acabar o tratamento... absurdo não é? Pela legislação vigente, o produto deve ser recolhido 60 dias antes do vencimento, mas por aqui na terra do "R puxado", todos botaram na cabeça que dá pra vender o produto ate o ultimo dia do mês de seu vencimento, azar de quem comprar. Intercambialidade de medicamentos existe a torto e a direito, apesar de existir uma RDC específica para regular estas trocas, mas ninguém obedece, afinal, o importante é não perder vendas. Algumas farmácias falsificam receitas a torto e a direito, apenas pela comodidade de quem compra e também para não perder vendas ou incomodar os médicos prescritores.

• Órgãos fiscalizadores deficientes. CRF, bombeiros e vigilância, basicamente só existem para receber e dar papéis; obviamente que realizam fiscalizações, mas nada fazem para uma mudança efetiva da realidade.

• Desrespeito com o profissional de nível superior. A maioria das farmácias não possui a "função caixa" e a "função atendente" separados, o atendente já é o caixa, e o mesmo serve para o farmacêutico. Dependendo da rede, o farmacêutico tem até que tirar lixo, limpar loja, lavar banheiro e afins. Realmente virou um profissional faz-tudo. Gerente, atendente, caixa, serviços gerais e até segurança...claro, sem ganhar nada a mais por isso. Inclusive, por conta dos inúmeros cargos acumulados pelos funcionários, muitas farmácias trabalham com o limite mínimos de funcionários, quando um fica doente, trabalha-se sozinho na loja.

• Mal direcionamento intelectual. Anos atrás fui a uma palestra do ilustre presidente do CFF, Walter da Silva Jorge João; dizia ele com bastante ênfase: "O profissional farmacêutico deve retomar seu lugar de direito na farmácia...", na época, aquilo soava muito desconexo com minhas experiências, mas depois de um ano levando tapa na cara em Curitiba, compreendi mais que perfeitamente a mensagem, já explico. Quando você vai a uma farmácia e pede ajuda a um farmacêutico, espera-se uma boa orientação sobre medicamentos, horários, modo de administração, tratamentos não farmacológicos, esclarecimento de dúvidas relacionadas a saúde e afins, isto não acontece com frequência na terra das araucárias; o que acontece é encontrarmos um balconista treinado para dar informações, corretas ou não; e um farmacêutico que apenas cospe dados de contabilidade, custo de compra, faturamento, lucro, metas e campanhas de venda... e infelizmente, só isso. Então, fica o questionamento, pra que pagar bem alguém que não exerce sua profissão de fato?

• Profissionais mal treinados. Dificilmente alguma farmácia vai oferecer treinamentos internos para desenvolvimento de pessoas, tudo é aprendido empiricamente na correria dos dias, como resultado, gerentes mal educados e mal preparados, funcionários que não sabem fazer nada além de entregar caixas, supervisores não sabem o que devem fazer para otimizar processos.

É claro que nem tudo é negatividade e não dá pra generalizar, existem empregos bons e dignos e é possível encontrar algumas coisas bem legais:

• Fácil contato com médicos. Falando mal dá pra acreditar, mas a maioria das receitas vem com dados de contato do prescritor e por sorte ou não, sempre pude resolver qualquer problema.

• Receitas digitalizadas. de 100 receitas por assim dizer, umas 85 são impressas no computador e muito dificilmente contem algum erro que impeça a venda de algum produto.

• Clientes/pacientes educados. Pode até acontecer alguma grosseria, mas é rara e a maioria dos clientes entende as burocracias existentes no processo de venda de certos medicamentos.

• Melhor acompanhamento farmacoterapêutico. Com a maior facilidade de contato, e a maior chance de retorno de um cliente a um estabelecimento, fica nitidamente mais propício a realizar um bom acompanhamento farmacêutico para um dado tratamento.

• Risco reduzido de assaltos. Mais uma vez, só quem já morou no norte ou nordeste vai me entender plenamente... mas comparando o incomparável, é bem mais seguro trabalhar em Curitiba do que em Belém por exemplo.

• Farmácias independentes. Para quem não gosta de grandes redes, a boa nova é que por aqui existem muitas farmácia pequenas e "sem bandeira"; a liberdade para desenvolver um bom trabalho como farmacêutico é bem maior do que em grandes redes que só querem números.

• Novas áreas de atuação. Bem diferente da realidade da região norte, o sul conta com muito mais áreas de atuação para diversas profissões, no caso do farmacêutico, é muito mais fácil entrar na indústria por aqui do que por lá, por exemplo.

Dados os pontos acima, fica a eterna pergunta, vale (ou valeu) a pena uma mudança? Então, depende muito do que se busca, analisando por exemplo o lado profissional; até o momento foi um desastre tão grande que as vezes penso se não seria melhor largar de vez a profissão farmacêutica, uma vez que a dor de cabeça seria bem menor... kkkkkkk, brincadeiras a parte, é frustrante mesmo; e piora ao saber que ao lado, em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, o piso, benefícios e condições de trabalho são melhores. Porém, se puxar o quesito estrutura, segurança e qualidade de vida, posso dizer que estou muito bem realizado.

Depois de uns belos tapas na cara, chego a conclusão que Curitiba é sim um bom local para se viver, desde que se tenha uma fonte de renda justa e digna, e claro, tempo livre para aproveitar o dia, o que não é o caso das farmácias de dispensação, logo... penso que seria uma boa ideia migrar para outra área de atuação ou até quem sabe mudar de cidade. Ainda assim, nem tudo está perdido, existem muitos cursos de pós graduação pela cidade ou próximas a ela, coisa que Belém até daria pra fazer, mas sairia bem mais oneroso. Felizmente o farmacêutico tem mais de 130 áreas de atuação pra tentar a sorte.