Pulsar



Quarto dia do ano, 2018... Estou em casa... Encontro-me sozinho com meus demônios, em uma cidade praticamente desconhecida, sem rostos familiares para me confortar; lá fora, a noite se adensa cada vez mais; grandes lufadas de vento e chuva atingem a janela; sinto-me inerte ao frio e a fome, apesar de não comer bem por semanas. Meus dias, desde que completei 33 anos passaram dolorosamente lentos e apáticos, toda a possibilidade de um futuro sonhado esvai-se a cada hora marcada pelo relógio, a cada dia que se passa. Sabem quando se perde a sensibilidade? Quando a alma está vazia de qualquer sentimento bom, e um buraco enorme toma conta de seu peito? Nada consegue amenizar... Sabe quando já não dói mais? O vazio é tão grande que nada dói... Apenas tem um vazio...

...Para fazer algumas poucas pessoas felizes fazemos ações e quase nada recebemos em troca ou talvez nunca o suficiente a ponto de preencher o vazio. Talvez o problema seja eu mesmo, é difícil para mim alcançar o estado de felicidade, não consigo me conectar definitivamente em um meio social, sempre entrando e saindo sem dificuldades, sem remorso, quase sempre sem interesse nas coisas vivificantes que os outros tem a oferecer. Lembro-me sempre de uma de minhas tias dizendo que raras vezes me viu feliz; lembro de minha amada falando a mesma coisa, mas em palavras exponencialmente mais duras e ríspidas... É sempre assim, tristeza atrás de tristeza. Vou ao no chão e começo a chorar com esta última lembrança, ferozes palavras ainda ecoam em minha mente... minhas lágrimas caem e começam a queimar, não meus olhos, mas meu coração... repentinamente minha mente se acalma e começa a maquinar um futuro tolo e imediatista... Sempre me considerei muito lúcido, lógico e racional, mas neste momento inegavelmente havia adentrado no estado suicida, nada mais fazia sentido ou tinha importância.

Lanço olhares à vários medicamentos em cima de minha mesa que juntos causariam coma, sangramentos, arritmias e muito provavelmente me trariam o estado de sono permanente. Mas antes, tenho necessidade de escrever, relembrando o que já virou meu jargão preferido, ostra feliz não faz pérola... Que curioso minha criatividade desabrochar em um momento como este... Apenas pego uma folha, uma caneta e obedeço meus instintos:

"Para minha amada, sinto muito em estragar sua vida e fazer você perder longos anos ao meu lado, desejo sinceramente que você seja feliz com sua nova escolha.
Para dona Elismara, sinto muito pela bagunça na casa, gostaria que fosse um espaço para realizar sonhos, mas não tive o tempo necessário para isto;
Para minha tia, desculpe o transtorno e todo o trabalho, quero que cuide muito bem da rosa; esta foi a última vez que você precisou se preocupar comigo;
Á rosa, creio que você nunca irá ler isto, mas quero imaginar que de alguma forma você saiba que um dos maiores arrependimentos da minha vida foi ter te abandonado;  
Ao meu irmão, sinto muito seguir o mesmo caminho que nossa mãe...Talvez você seja a única pessoa capaz de me entender, pois foi o único que esteve ao meu lado e vivenciou quase tudo que vivenciei; foi muito bom te ver uma última vez meu irmão, fico feliz que você tenha encontrado uma companheira à altura, você pode ficar com meu carro, espero que cuide bem dele..."


Minha mente sai da fria e assustadora calmaria trazida pela insensibilidade, mais uma vez sinto lagrimas aflorarem, desta vez mais intensas que momentos atrás, as lembranças de meu irmão, da rosa e de minha mãe são tão avassaladoras que não consigo mais escrever, minhas mãos apenas tremem sem firmeza... Decido então realizar um ritual de despedida das pequenas coisas que gosto, e mesmo com o pensamento distante, ainda me restaram forças para ouvir música em meu computador... Ironicamente a primeira que toca é "Die hochzeit" de Richard Wagner, nunca consegui de fato entender que tipo de sensação esta obra causa em mim, no entanto, o torpor de momentos atrás começa a deixar minha mente, me entrego ao ritmo da música e me sinto saindo de uma profunda escuridão; meus olhos vão de relance para a carta que estivera escrevendo, depois seguem para os livros em cima da mesa, revejo os comprimidos fora de suas embalagens... Respiro muito profundamente como nunca respirara antes e volto a sentir mais uma vez uma dor indescritível no peito, acompanhada de diversos sentimentos: raiva, solidão, angústia, abandono, frustração... Como havia chegado ao fundo do poço tão repentinamente...? Me pergunto em meio a um turbilhão de sentimentos e muitas lágrimas...

Dizem que uma estrada fica deserta por dois motivos: desprezo ou abandono, acredito que cometi ambos, abandonei e desprezei meu próprio caminho e agora me encontrava em um deserto ou eu próprio me transformara em deserto; havia me perdido completamente; para me reencontrar é preciso voltar alguns anos para tentar entender...raciocinar...resignificar...e talvez recuperar um pouco de mim mesmo...


A origem do vazio

É difícil definir quando um evento na vida começa e quando acaba; prefiro imaginar que sempre estamos em transição, saindo de uma experiência e já entrando em outra, levando é claro, aprendizados de vivencias anteriores. Por inúmeros motivos prefiro o tom de impessoalidade ao me expressar, muitos acham uma característica de extrema frieza e indiferença, paciência, este sou eu afinal, mas desta vez pelo menos não será assim...venho precisando à tempos (muito tempo mesmo) desabafar e contar um pouco da minha história, da minha dor; no momento, não encontro ninguém que possa me ouvir, então, nada melhor que falar para "ninguém".

Acredito veemente que uma das coisas mais difíceis de vivenciar (e superar) é a dor do abandono, da perda, da rejeição; para mim esta "dádiva" veio com horário de verão, mais cedo que o normal. Já na escola apanhava das freiras por escrever com a mão esquerda, ouvia o tempo todo que não era de deus... Aliás, à que deus malvado fui apresentado; quem for adulto lendo este texto vai achar idiotice guardar ressentimentos de deus e seus capachos religiosos por um ato hediondo praticado por um punhado freiras, mas coloquem-se no lugar de uma criança de 3 anos... Talvez minha grande aversão à religião tenha nascido aqui... apenas talvez...

Em casa, 4 tios, 4 netos, 2 avós, mais alguns agregados e claro, minha mãe; todos vivendo por vezes em conflitos e amarguras, perdidos em seus cotidianos individuais; sem dúvidas a vida não foi fácil pra essa turma. Minha mãe sempre destacou-se pela excentricidade e pelo espírito genuinamente livre, porém em estado aprisionado (paradoxal não é?!), era muito comum vê-la almejar algo e por diversos compromissos (filhos, trabalho, grana) se frustrar; um de seus desejos mais marcantes sempre foi a vontade de ter o próprio canto; uma grande falha que apagou qualquer possibilidade de brilho em sua vida foi a fuga da realidade causada pelo álcool; mais uma vez o fantasma da rejeição fez sua aparição... E por vezes eu e meu irmão éramos segundo plano.

Segundo a psicologia, quando uma criança não é bem aceita, acaba por não vivenciar a autenticidade de seus próprios sentimentos. Em outras palavras, quando os pais não tem um bom envolvimento com os cuidados à criança, ela desenvolverá mecanismos inconscientes para contar com o que tem, ou seja, somente com seus próprios recursos. É quando a criança experimenta o abandono e passa desde muito cedo a agir como um ser independente, como se no fundo soubesse que não pode contar com mais ninguém.

Diante desse quadro, podemos encontrar três complexos psicológicos principais (vulgarmente conhecidos como traumas):

Profunda sensação de ausência pessoal de valor
O calor materno oferece à criança a sensação de valor. Quando esse amor deixa de existir a pessoa se sente rejeitada, acha que fez alguma coisa errada, e passa a duvidar da razão de sua própria existência, como se houvesse um vazio e que nada o preenchesse.

Sensação de culpa
Essa culpa não deve ser confundida com a culpa mais consciente que a pessoa sente quando faz algo. É uma culpa mais profunda, onde acaba por se culpar por não ser amado, aceito. Essa busca pela mãe, ou pela fonte de carinho, amor, pode desencadear outros processos na vida da pessoa. É como se sempre estivesse em busca dessa proteção. Sente que tem uma dor que não pode ser aliviada, e assim, acaba por sentir pena de si mesma, desenvolvendo muitas vezes a auto-piedade.

Profunda atração pela morte
Para a criança, o abandono por parte dos pais é equivalente à morte. Essa sensação é mais profunda em quem realmente perdeu a mãe no momento do nascimento ou ainda quando era criança. Pode ressurgir mais acentuadamente em momentos de renascimento ou quando algum projeto está para ser iniciado, como em momentos de mudança, pois todo caos que precede a cada novo nascimento acaba por gerar um doloroso processo de recordação de sua experiência traumática inicial do abandono, podendo facilmente sentir-se imobilizado frente ao desconhecido, sem permitir-se crescer, transcender, resistindo às mudanças. Pode existir em algumas pessoas a síndrome do aniversário, onde revive seu trauma de infância, o abandono, evitando assim, qualquer tipo de comemoração.

Se não falei de meu pai até aqui, é porque ele nem merecia menção, simplesmente fez o trabalho de fecundar e praticamente pulou fora. Minha mãe foi encontrada morta ao cair do oitavo andar de um prédio, suicídio ou assassinato...nunca quis saber, mas este ato botou de uma vez por todas uma verdadeira pedra em meu sapato, nunca mais seria como o garotinho sorridente, brincalhão e tagarela que costumava ser na infância. Fui criado por minhas tias e avós, mas o estrago já estava feito. A dor da perda e do abandono para uma criança são horríveis, e como se não bastasse ainda teve gente que achou que não passava de frescura... Uma pena... Uma mão que poderia ser estendida para ajudar se contrai para dar um tapa, aumentando ainda mais a dor, o afastamento e o vazio... O que fazer quando se é uma criança solitária a não ser se fechar e viver em um mundo próprio. A arte imita a vida (ou vice versa), filmes como o jardim secreto, ponte para terabitia, labirinto de fauno demonstram coisas parecidas...Vez ou outra ainda me pego em meio à tais devaneios.


O primeiro feixe luminoso...

Já grande (pelo menos em tamanho) e dono de uma carapaça quase intransponível, ignorei muitos avisos pessimistas e sai de casa; fui conhecer minha própria solidão, nunca tive paixão por TV ou baladas noturnas, passei a ler e a jogar bastante para me distrair e assim, fui me afastando cada dia mais do mundo raso e leviano das pessoas mais comuns; hora ou outra visitava  a casa de meus avós, afinal, ninguém é completamente uma ilha; com a distância do convívio, comecei a entender que nem toda saudade é prejudicial, passei a amar minha família muito mais depois de morar sozinho do que durante o convívio. Era um belíssimo dia de outubro quando encontrei uma mulher: pele alva, cabelos ruivos e cacheados, "gordinha", sensível, sorriso fácil, leitora aficionada, cantora e amante das mesmas músicas que eu; sempre havia identificado mulheres como meros objetos destinados ao jogo e a mentira, sem sentimentos verdadeiros, movidas apenas por interesse e prontas a magoar, mas esta foi diferente de todas as outras; após algum tempo de convívio, era como se acabassem os longos anos de vigília na minha torre da solidão, finalmente havia alguém com quem pudesse conversar de igual para igual e eu já não me sentia só; pela primeira vez na vida o amor chegou verdadeiramente em mim. Mas não era para ser, aquela grande mulher já tinha uma carga emocional muito pesada à suportar, perdera a guarda de dois filhos, ex-marido com amante, sem teto, sem dinheiro e com um namorado mais problemático que eu... Apesar de todas as vontades e muito sofrimento, ficamos apenas como bons amigos. E quanto aquela carapaça quase intransponível? Pois é, ela conseguiu estilhaçar... Estava pronto e curioso para novas experiências.


Supernova

Eram meados de setembro ou talvez agosto; não importa, afinal, o tempo é relativo; meu chefe havia me avisado que uma moça estaria entrando no setor para ser estagiária, já havia lidado com muitos estagiários anteriormente, então nada fora da rotina até aqui, apenas aguardei... Horas depois fui avisado de sua chegada... Ouvi passos no corredor, a maçaneta girou e quando a porta do laboratório finalmente se abriu... Minhas pupilas se dilataram e o ar fugiu de meus pulmões diante de tamanha formosura; não acreditava em paixão à primeira vista até aquele momento; meu peito foi tomado por alegria e eu estava em festa; senti o verdadeiro pulso da vida tomando conta de mim, era como se um feixe de luz invadisse cada canto escuro que ainda restava em minha alma; determinado e destemido, conquistei aquela mulher.

Nos encontramos verdadeiramente e inesperadamente; ela, supostamente, havia acabado de sair de uma grande desilusão, e eu estava a anos na solidão, me considerava senhor de mim e não havia medo ou hesitação em lugar nenhum de meu ser. De tão intensa nossa relação, as vezes me imaginava em mais um dos mundinhos sonhados por mim, estava entre a negação e o êxtase da realidade. Dias, semanas e depois meses... Sim, o tempo mostrou que era tudo real. Quando achava que nada poderia ser melhor, decidimos nos entregar ao sentimento e ao instinto; me sentia pleno, transbordado pelo encantamento que aquela mulher criara; sem freios, sem racionalizações, sem censuras e sem julgamentos. Vivemos um amor infinito, mágico e perfeito; tudo era puro encanto.

Tudo o que escutara sobre amor durante a vida se esvaziara de significado ou ficara ridiculamente pobre perto do que experimentamos. Todos sempre falavam das coisas maravilhosas que o amor poderia ser, mas mesmo o melhor poema do melhor dos poetas parecia apenas migalhas e restos daquele banquete que vivenciamos com tamanha plenitude. Outros casais não conseguiam se equiparar... Agora, pleno e completo, sentia compaixão e pena por quem ainda não havia encontrado tal sentimento. Meus melhores devaneios tornaram-se reais com aquela mulher, vivíamos à parte do mundo, quase em outra dimensão.

Para emanar felicidade, você não precisa expor sua intimidade. O amor de um casal é sagrado, não é vitrine da vaidade. Deveríamos ter tomado mais cuidado com este pequeno, mas sábio ditado, eu acredito veemente nele, mas ela parecia não ter consciência. Infelizmente, com as redes sociais, quase tudo passa a ser de "domínio público", virando uma coleção de exibições sobre a felicidade (ou pseudofelicidade) daquelas pessoas que postam cada passo de suas vidas e de seus relacionamentos. Muita gente tem necessidade de exaltar a vaidade, necessidade de afirmação e autoafirmação para uma sociedade que obriga o "encaixe" nos padrões. Pois é... Como cresci e vivi sozinho, pouco me importa a opinião de uma maioria, para mim bastava estar junto e se deixar levar pelo encantamento; para ela, a reputação valia mais que tudo; logo deveríamos nos encaixar no modelo social que pressupõe um relacionamento de sucesso: Namorar - noivar - casar com uma festa inesquecível - viajar e matar de inveja as amigas encalhadas - Filhos - envelhecimento... E daqui em diante, ninguém mais quer saber de nada e seríamos finalmente livres para fazer o que quiséssemos, é que a sociedade não gosta de gente velha.

Disposto a segurar o anjo que me transbordara de felicidade, resolvi me submeter aos costumes sociais, noivamos; a expressão de incredulidade misturada com felicidade em seu rosto angelical nunca mais saiu de minha memória. Algum tempo depois, um mantra maldito impregnou nossas conversas e pensamentos: "Deus abomina o divórcio", "Deus abomina o divórcio", "Deus abomina o divórcio", "Deus..."; mantra este saído do livro casamento blindado, leitura boa, MAS falta muito bom senso em alguns capítulos; os autores repetem exaustivamente muitos mantras que quando não pensados com calma viram verdadeiros tabus... Não demorou muito para ela falar ao pé de meus ouvidos: "poderemos estar muito infelizes e brigados, mas não darei nunca o divórcio"... Oras, então seria conveniente vivermos infelizes até o final de nossos dias do que tentar buscar novamente a felicidade? Mais uma vez o divino mostrou-se sádico e ilógico... Comecei a relembrar todas as histórias (ou tragédias) das pessoas próximas a mim que se casaram e resolveram seguir este mantra maldito. Nem preciso dizer que tais palavras ecoaram semanas em minha cabeça já perturbada... Além do mantra maldito, passei a ser pressionado por mudanças em minha personalidade, um verdadeiro pecado, afinal amei "apesar de" e não "pelo que"... Gostaria de ter sido retribuído quanto a isto. Em um ato covarde e altamente repudioso, rompi nosso noivado que mal tivera tempo de ser planejado, comecei a me encher de dúvidas e medos quanto ao futuro, quanto a minha capacidade em faze-la feliz. Ver o rosto de minha amada cheio de tristeza e decepções profundas me fez abraçar todo e qualquer sentimento de culpa que viesse a aparecer doravante neste relacionamento.


Implosão

Reatamos, mas senti que nunca fui perdoado de verdade pela covardia, como poderia...? A chama de nosso amor abrandava, mas sempre reavivava; muitas vezes parecia que se apagaria definitivamente, os motivos: Excesso de carência afetiva e falta de liberdade.

Posso expressar somente minha parte da história... quando iniciava algum projeto individual, ou outra coisa que demandasse um pouco mais de tempo, acabava deixando-a mais solta; assim, em muitas ocasiões, não estivera de prontidão no celular ou não dera uma curtida no facebook; ela reativamente se queixava que não recebia a devida atenção, que não a amava mais, que não me importava mais... Nos separávamos... Muitas vezes, nem dava tempo de sentir saudades e já era procurado novamente... Saudade aliás, que nestes momentos seria muito mais saudável do que ressentimentos sendo depositados para usos futuros... Nem todo afastamento significa desafeto...

Quem quiser acabar com um romance, comece a focar somente e apenas no que seu parceiro faz de errado, tente modificar ou comece a criticar seu conjugue pelo que ele não é e deixe de ama-lo pelo que é, com o tempo ele vai se achar incapaz e desmotivado, como sei disso? Experimentando na pele. Sentira muitas e muitas vezes a incapacidade de dar atenção, de dar afeto, de amar, de fazer qualquer coisa à dois... Nada do que fazia parecia contar em nosso placar de afeto, somente as coisas negativas passaram a somar pontos. Sempre que a chama abrandava, era porque eu não era capaz, sempre tinha que ouvir que nunca corri atrás, que nunca fazia isso ou aquilo... Há tempos decidira assumir inconscientemente todas as culpas, com o tempo fui minando a mim mesmo e consequentemente nosso relacionamento; não passava mais a correr atrás não porque não a amava, mas porque não me sentia mais digno.

Outro ponto muito delicado de um romance? Liberdade, segundo Rubem Alves em mais um de seus brilhantes textos:


"Escrevi uma história sobre isso. A Menina era apaixonada pelo Pássaro Encantado. Mas ela sofria porque o Pássaro era livre, O Pássaro Encantado era sempre uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se. O Pássaro lhe disse que era preciso que fosse assim, para que eles continuassem apaixonados. Ele sabia que a paixão não ama pássaros em voo. Mas a Menina não acreditou. Prendeu-o numa gaiola.

Gaiola? Há as feitas com ferro e cadeados. Mas as mais sutis são feitas com desejos. Esquisito o que vou dizer: a alma é uma biblioteca. Nela se encontram as estórias que amamos Romeu e Julieta, Abelardo e Heloisa, O paciente Inglês, As Pontes de Madison, A Menina e o Pássaro Encantado. As estórias que amamos revelam a forma do nosso desejo. Delas escolhemos uma, é a nossa gaiola. Gaiola na mão, saímos pela vida à procura do nosso Pássaro. Quando imaginamos havê-lo encontrado, uh, que felicidade! Ficará feliz em nossa gaiola. Será o amante da nossa estória de amor: eu prá você, você prá mim. . . Nós colocamos lá dentro e pedimos que nos cante canções de amor.

Acontece que o Pássaro também tinha a sua estória. E era outra. Todo Pássaro deseja voar. Ele bate suas asas contra as grades, suas penas perdem as cores e o seu canto se transforma em choro. E, de repente, ele se transforma. Não mais o reconhecemos, é um outro. Essa é a razão por que a dor da paixão satisfeita é muito maior."


A moral dessa história é a sabedoria imprescindível aos amantes, apaixonados, casados e namorados; aos pais e aos filhos, aos avós, netos, amigos, patrões e empregados. Afinal, ela ilustra uma verdade defendida pelo escritor Rubem Alves: “Não há amor que resista à perda da liberdade. Se não houver liberdade, não existe possibilidade que o amor dure". 

Ciclismo, fotografia, cicloturismo, leitura... Não me dei conta, mas estava quase sempre só ou quando era recebia apoio, deveria ser em troca de algo; terminamos por exemplo por eu dar mais atenção à minha câmera do que para ela; passava mais tempo preocupado com minha bicicleta do que com ela; preferia ler um livro do que ficar ao celular enviando mensagens e assim por diante... E a situação apenas piorou depois que ela perdeu o emprego... Sempre eu... O culpado... Aliás, tive culpa sim em não dialogar mais, em me precipitar e pedir termino, neste sentido sim, fui muito culpado, muito indigno...

Apesar de todos os sofrimentos vividos durante minha infância, ainda sonhava em ter uma família com um ou dois filhos para bagunçar e encher nossa casa de vida. Sonhava em chegar em casa após um dia de trabalho e reencontrar todos meus amores juntos. Uma noite de domingo compramos um teste de gravidez, foram os três minutos mais longos que presenciei, toda minha vida, passado, presente e futuro passaram diante de meus olhos, estava desesperado, mas ainda esboçava certa alegria, inclusive com um sorriso no rosto, olhei para ela, também em estado de desespero, porém... Repetia consigo mesma que iria abortar, que não queria, que iria tirar de qualquer jeito não importando minha opinião... Mais uma vez, queria entender qual deus (com "d" minúsculo mesmo) aceita regras acima de uma vida; raramente falamos em filhos após esta experiência. Passei a me questionar quem era o religioso e quem era o descrente afinal.

Depois de mais algumas aventuras, ela decidiu se afastar completamente, mudou de cidade, de estado; em uma breve visita, notei que a chama que nos unira ainda estava acesa, mas ela estava disposta a esquecer tudo e assim fiquei nas sombras, ninguém mais saberia quem eu era para ela naquela cidade, ainda assim, me dispus a largar o pouco que tinha para ficar junto dela. Cruzei o Brasil com o coração alegre e cheio de saudades. Ao chegar em meu destino, reencontrei a magia que estivera presente nos primórdios de nosso encontro, desta vez estava disposto a fazer dar certo.

Foram três meses mágicos em minha vida, chegar em casa e reencontrar a mulher amada me dava forças para vencer qualquer desafio, não me importava em ter um emprego com horário e salário ruins; acordava mais cedo e dava-lhe um beijo no rosto, e quase sempre fazia questão de contemplar seu encanto antes de sair do quarto; por vezes repetia em seus ouvidos que a amava e que cruzara o Brasil para ficar a seu lado, ela fazia sempre questão que eu repetisse muitas vezes. É claro que queria que tivéssemos nosso canto, afinal, só o amor não basta e é preciso aceitar a praticidade da vida; viver em casa de parentes não é boa ideia para um casal; parti a procurar uma casa boa e confortável o suficiente para nos dois; encontrei e mobiliei, quando chegou o dia de me mudar definitivamente, lembro-me de ter pego alguns pertences e minha mala, quando estava prestes a sair do quarto, minha mão foi puxada e logo escutei uma voz com lágrimas embargadas: "fica, por favor", não queria sair daquele conto, mas era preciso, tinha esperanças de construir um lugar aconchegante para nós dois; fitei seu rosto e mais uma vez, vê-la triste por deixa-la, partiu meu coração novamente, talvez nunca esqueça de suas feições naquele momento. Mais uma vez, longe da convivência diária, passei pelas mesma críticas e provações das vezes anteriores, era indiferente, não dava notícias, não respondia celular, não me importava mais. A última vez em que nos tocamos foi no dia em que completei 33 anos. Não era para ser novamente.

Existe uma grande diferença entre assumir um relacionamento e assumir um sentimento. Para mim, havia apenas eu e ela e isto bastava; já para ela, não, existia eu, ela e todo um bando de palpiteiros com planilhas de metas e resultados. No meio tempo em que estivera ocupado e enfurnado no emprego; um irmão de igreja, pasmem, um pastor que deveria orientar casais e não destruí-los... Começou a paquera-la, conquistou-a e a convenceu que nosso relacionamento a nada levaria... que golpe baixo, de repente, o nono mandamento simplesmente deixou de existir? Claro que não... Basta um malabarismo mental e algumas palavras vazias e tudo se resolve, afinal, quando é conveniente tudo é questão de metáforas e interpretação. Oras, mais uma vez... um deus maldito com seus discípulos trapaceiros e ardilosos, falsos seguidores ou falso deus. Os beijos cheios de amor e encanto iguais aos do início do namoro desapareceram; o brilho de paixão em seus olhos apagaram-se, não tardou para que poucos dias depois ela quisesse ficar somente "na amizade"... Tudo em mim se apagou também, deixei de comer, de dormir, de sonhar, de sair de casa; mais alguns dias se passaram e tive a infelicidade de flagrar uma foto dela com o maldito pastor juntos com a frase: "O amor é lindo"... Fui visitá-la e a mesma confirmou, mas afirmou categoricamente que não estavam juntos ainda naquele momento da foto três dias atrás e que apenas conversavam "inocentemente sem segundas intenções", mesmo quando ainda estávamos juntos... Engraçado como o "amor" nasceu rápido e como "sem segundas intenções" levaram rapidamente ao namoro... Para tal intensidade, talvez este caso já viesse de mais tempos atrás, ainda assim... mais malabarismos e mais contravenções e acabo recebendo como resposta: "Não estávamos namorando oficialmente, então tecnicamente, mesmo se eu estivesse ficado com ele antes de você vir para cá, ainda sim não seria traição". Nesta mesma noite,  ainda fui fuzilado com todo o rancor que ela havia guardado durante anos; os meses em que vivemos recentemente juntos praticamente foram esquecidos, apenas colocados como: "erro e acomodação", "não era um desejo de meu coração", ainda precisei ouvir: "tenho um carinho e um apreço muito grande por você, fique à vontade para visitar a igreja e será muito bem vindo", dentre outras coisas que não vem ao caso. Depois, acabei por descobrir que para sua irmã escrevera que não via a hora que eu saísse de sua casa. Traído, enganado, abandonado, trocado...

Sim, foi assim que parei no fundo do poço, esqueci de meus ideais, meus sonhos, amei alguém mais do que à mim mesmo, deixei de ser senhor de mim, abandonei minha solitude... Você caro leitor, deve se perguntar qual o sentido de eu ter escrito este texto todo... Nenhum, para você, mas para mim, é importante saber como e onde me perdi para assim, tentar me reencontrar e o faço através da escrita.


Pulsares

A nível de curiosidade, pulsares são objetos presente no universo. Quando uma estrela esgota seu combustível, dependendo do tamanho, ela se transforma em uma supernova, o núcleo da antiga estrela começa a implodir e vira uma estrela de nêutrons. Com o campo magnético do novo corpo celeste radiações começam a girar muito rapidamente ao redor da estrela de neutros, dando a impressão de um farol girando.

Quanto ao quarto dia do ano? Evidentemente não cometi nada, do contrário não teria escrito este texto. Meus amigos, atuaram como o campo magnético que deixa a radiação "presa" na estrela de nêutrons; pessoas com quem não falava a anos e outras de quem já não esperava nada me deram forças e não me deixaram cair.

Edgar
(...) Quem sofre sozinho, sofre muito mais em sua mente (espírito). Deixa para trás a liberdade e a alegria. Mas a mente (espírito) com muito sofrimento pode superar-se, Quando a dor tem amigos e suportam a sua companhia, quão leve e suportável a minha dor parece agora. (...)



Fonte: Rei Lear, William Shakespeare


No momento, ainda me sinto como uma estrela de nêutrons, fechado ao extremo e com pouco brilho; felizmente pulsares ainda são considerados objetos de fascínio e grande mistério... Quem sabe o que consigo atrair com o farol que ainda me resta...

Ainda posso andar de cabeça erguida, ainda posso me olhar dignamente no espelho, posso ainda afirmar que apesar de nem possuir religião, sou muito mais espirituoso que muita gente, afinal, religião é uma demonstração pública da fé, mas espiritualidade é a fé na prática. A religião lhe ensina que você tem asas e a espiritualidade é que faz você alçar voo. Aprendi ainda que não é um pedaço de papel ou uma aliança que segura duas pessoas e sim o consenso mútuo de confiança e honestidade de que ainda vale a pena conviver mais um dia com esta pessoa. Posso olhar para trás sem vergonha do que vivi e senti. Dos males sociais chamados conveniência e aparência, pelo menos não sofro. Quanto a ideia de que um relacionamento não leva a nada... Bem, a própria vida em si não nos leva a lugar algum, prefiro acreditar estar em uma dança eterna, onde deveríamos dançar apenas pelo prazer de dividir o salão de dança com nosso par enquanto nossa música tocar. Mais uma grande lição aprendida na prática...


“Portanto, sim, ele tem suas falhas, mas que importância tem isso, quando se trata de questões do coração? Amamos aquilo que amamos. A razão não entra nisso. Sob muitos aspectos, o amor insensato é o mais verdadeiro. Qualquer um pode amar uma coisa por causa de. É tão fácil quanto por um vintém no bolso. Mas amar algo apesar de, conhecer suas falhas e ama-las também, isso é raro, puro e perfeito.”
Fonte: Temor do sábio, Patrick Rothfuss 

Comentários

  1. Acabei de ler nesse minuto. Eu estou simplesmente arrepiada. Há muito tempo não lia algo tão bem escrito e sincero. Saibas que em uma relação, seja ela qual for, os dois são responsáveis pelo sucesso ou fracasso. A culpa muda de lugar dependendo da perspectiva. É muito mais cômodo apontar o erro do outro ao invés de tentarmos corrigir os nossos...já dizem por aí que "o ataque é a melhor defesa"...muita gente acredita nisso porque o que vejo de gente fazendo. Desejo-te muito boa sorte nessa busca. O que vejo é um farol magnífico e que ainda tem muito a conquistar. Com amor, tua tia Dani. ❤️

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado. Antes de mais nada devemos lembrar SEMPRE e tentar não esquecer que uma relação amorosa se resume em (EU + TU) ou (EU + ELA) = NÓS; assim sendo, toda relação, mesmo as mais desastrosas, tem cumplicidade e potencialidade para seu acontecimento, ou seja, nem o "EU" e nem o "TU" trabalham sozinhos, e sim o "NÓS" é quem deve ditar os acontecimentos e isto só vem através do diálogo, não acusações, não adivinhando, não escondendo, não esperando sempre do outro e sim dialogando à dois, parece óbvio, mas não é. Infelizmente este foi mais um dos aprendizados desta experiência.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas