Urubus e invalidação emocional


"Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam... Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto, decidiram que, mesmo contra a natureza, eles haveriam de se tornar grandes cantores. E para isto fundaram escolas e importaram professores, gargarejaram dó-ré-mi-fá, mandaram imprimir diplomas, e fizeram competições entre si, para ver quais deles seriam os mais importantes e teriam a permissão para mandar nos outros.

Foi assim que eles organizaram concursos e se deram nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu titular, a quem todos chamam de Vossa Excelência. 

Tudo ia muito bem até que a doce tranquilidade da hierarquia dos urubus foi estremecida. A floresta foi invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas para os sabiás... Os velhos urubus entortaram o bico, o rancor encrespou a testa, e eles convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito.

— Onde estão os documentos dos seus concursos? E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais coisas houvesse. Não haviam passado por escolas de canto, porque o canto nascera com elas. E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas cantavam simplesmente...

— Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação devida é um desrespeito à ordem. 

E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás...

MORAL: Em terra de urubus diplomados não se houve canto de sabiá."

Rubem Alves


Havia prometido para mim que deixaria de flertar tanto com psicologia, sociologia e filosofia neste 2025, pois afinal, não me serviram de nada na vida do dia-a-dia, e é frustrante querer muito e não poder conversar sobre um ou outro livro ou ainda alguma ideia deste ou daquele autor, todo esse conhecimento só me isolou socialmente e acho que não me fez uma pessoa melhor, afinal.

MAS...

Estava lendo um artigo sobre metodologia científica na área da química orgânica e uma das referências da autora foi justamente o livro "filosofia da ciência", de Rubem Alves... E pronto! Já vem o comichão de relembrar esse e aquele texto, de reler pra ver se a sensação da primeira lida ainda continua a mesma ou se já mudou.

Voltando ao ponto, sabe a historinha dos urubus e sabiás? Esse fenômeno tem um nome na psicosociologia, invalidação do outro. E é claro que teria um nome, tudo para a turma com parafusos a menos tem uma caixinha pra você guardar, classificar, categorizar e se quiser, até problematizar mais tarde também. É mais fácil entender esta invalidação do outro de tomarmos como base, invalidações emocionais.

Invalidação emocional


Lá da metodologia científica, validar significa tornar aceito e serve para confirmação de alguma hipótese ou método, aqui no caso, é apenas ouvir e aceitar que outrem tem e sente certas emoções. A invalidação, então, é exatamente o oposto.


Invalidação emocional é o ato de descartar ou rejeitar os pensamentos, sentimentos ou comportamentos de alguém; é meio que dizer: "Seus sentimentos não importam. Seus sentimentos estão errados". Esta invalidação pode fazer você se sentir sem importância ou irracional. Pode assumir muitas formas e acontecer a qualquer momento.

Algumas pessoas o fazem intencionalmente, como uma ferramenta para manipular, fazendo você questionar seus sentimentos e as vezes até suas convicções. Eles podem dizer algo como: "Tenho certeza de que não foi tão ruim assim" ou "era apenas uma brincadeira" para situações claramente ofensivas.

Outras podem fazer "sem querer querendo", por exemplo, ao tentar animar em uma situação estressante, alguém pode usar frases como: "Poderia ser pior" ou ainda "tem gente pior que você". Embora seja feito por acidente e com boas intenções, isso não faz com que doa menos.

É importante frisar que a invalidação não precisa ser obrigatoriamente verbal. Sabe aquelas ações tipo revirar os olhos, imitar a fala em tom infantil, mostrar a língua, ignorar a pessoa ou mexer no telefone enquanto alguém fala? Então...


Inclusive, existem muitos filmes de "comédia" onde alguns personagens são invalidados desta forma e se assim como eu, você não apenas não ri, mas acha ridículo, este talvez seja o motivo, provavelmente você conheceu a dor da invalidação.

Não importa como aconteça, a invalidação emocional sempre é sinônimo de confusão, afastamento e desconfiança.

Por que as pessoas invalidam?


As pessoas geralmente invalidam alguém porque são incapazes de processar as emoções dessa pessoa. Inúmeros são os fatores, as vezes, alguém pode estar com a cabeça no mundo da lua e em outras, apenas ocorrem situações onde não há palavras para responder no momento. É importante frisar que a grande maioria das pessoas invalida outras sem intenção de faze-lo.

Agora, existem sim, aqueles que irão usar intencionalmente a invalidação do outro e isso pode significar querer se afastar, talvez para não se machucar? Talvez para evitar assumir a responsabilidade por seu papel nessas emoções? Talvez por inveja? Tenso hein, mas acontece.


Haverão também, aqueles que se usam da invalidação para tentar machucar "de verdade" ou para tentar te enfraquecer para depois manipular. E sim, caros leitores, esse tipinho anda solto por ai apenas aguardando uma vitima para destilar seu veneno e suas próprias inseguranças. Por experiência própria, uma simples conversa em um jantar se transforma em sessão para culpar, xingar, minimizar sofrimentos e resolver problemas antes de sequer tentar entender a experiência da outra pessoa.


Consequências da invalidação


Além de deixar a relação "distante", amedrontadora e as vezes até desagradável, a invalidação emocional também pode causar: 


  • Problemas com identidade pessoal: Pessoas que sentem que suas emoções são invalidadas frequentemente as escondem do mundo e desenvolvem baixa autoestima; logo aparecem outras derivações desta consequência: Sentir-se indigno ou não merecedor de validação; crença de que os próprios sentimentos não têm valor; avaliação negativa de si mesmo.
  • Dificuldade de relacionamentos: Tentar se expressar e ter as emoções constantemente invalidadas sempre vai te deixar com os dois pés atrás quando se tratar de relacionamentos e aqui são minhas próprias percepções: Dificuldade para se conectar genuinamente com outra pessoa; sentir-se desconfortável, quase como se estivesse pisando em terreno instável prestes a ceder; e claro, sentir que o amor vem sempre acompanhado de medo, insegurança, negação ou culpa. Diria que acima de TUDO, vem o medo de se abrir novamente, sem dúvidas é a característica mais marcante que posso mencionar.
  • Problemas de saúde mental: Baixa autoestima... Já sabem, não é?! É o pack Depressão, ansiedade, ataques de raiva, confusão, insegurança emocional, sofrimento silencioso. E se você já tem alguma condição de saúde mental, isso pode piorar seus sintomas.
  • Dificuldade em gerir emoções:  Afinal, como nada do que você sente foi importante pra alguém afetivamente próximo, você passa a questionar se de fato suas emoções não são mero drama e tudo passa a ficar bem confuso.

Ai você macaco sabido pode dizer que não importa o que os outros dizem, sim, está na moda mandar o dedo do meio para o mundo e dizer dane-se; acontece que humanos são seres gregários, ou seja, QUEREM se relacionar, QUEREM afeto, QUEREM ser aceitos e por vezes, também, desejam validação do grupo ou de alguém mais especial. É biológico e resquício evolutivo, não tem jeito.




A invalidação emocional pode começar já na infância, nas relações criança-cuidadores, e se acontecer na infância, pode ter efeitos duradouros que podem durar até a idade adulta. Pois é... Infelizmente não escolhemos nossos pais, mas acreditem, eles também educam achando que estão fazendo o melhor porque por vezes, também não foram validados na vez deles e por falta de conhecimento o ciclo se eterniza.

Validação emocional


A validação diz a alguém que suas emoções são respeitadas. Ela abre espaço para as emoções de outra pessoa existirem. Por meio da validação, podemos confirmar que os outros têm suas próprias experiências emocionais e que essas experiências são reais, valorizadas e importantes.

O primeiro passo é ouvir. Sintonize-se "de verdade" na conversa. Tente deixar todas as distrações de lado e dê sua atenção ao orador.

O segundo passo diria que é entender. Sim, ouvir a gente ouve uma penca de balelas, mas parar e pensar o que aquele bando de palavras está nos comunicando exige tempo, paciência e atenção.

O terceiro passo é aceitar. Parece estranho, eu sei, mas aceite que existem pessoas que sentem diferente de você, que uma gota de chuva para um elefante pode não ser nada, mas que para uma formiga pode ser extremamente problemática. Aceite também que todos erram e que podem sem querer, ter causado uma enxurrada de emoções e machucados.

No mais...


Mesmo sem querer, deu pra notar que tem muita gente fazendo papel de urubu sem querer; e tem muito urubu fazendo papel de gente, intencionalmente usando de estratégias para te enfraquecer, manipular e entristecer, então, assim como no texto do ilustríssimo poeta, é impossível "vencer" a uma disputa onde não existem regras justas e é exigido alvarás e certificados para provar o que falamos e sentimos. Talvez o melhor mesmo seja seguir o exemplo dos sabiás e cantar em outra floresta.

Lembre-se, nunca deixe uma pessoa te fazer sentir culpada por escolher não mais tolerar desrespeito; não há nada de errado em respeitar a si mesma.

Recupere-se


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