Coisa mais "de macho" e apego evitativo


Tarde destas o Reddit me mostra esta pérola de uma das comunidades:


"Namorar uma mulher trans é uma das coisas mais "de macho" que um cara pode fazer, e não pelo relacionamento em si, mas pelo que ele implica socialmente. Um cara que assume publicamente esse relacionamento tá sujeito a olhares tortos, piadas, xingamentos e até discriminação (assim como sua namorada deve sofrer, claro, infelizmente).

Isso exige uma postura firme, segurança em si mesmo e coragem para não se importar com o que as pessoas vão falar ou zoeirinhas — características que muitos associam à verdadeira masculinidade. Se um cara se importa mais com o que sente pela parceira do que com o que os outros vão dizer, isso demonstra confiança no taco dele e independência. Deixar passar uma mina que ele ama por causa do que os outros vão achar é balela.

No fim das contas, ser homem de verdade não tem nada a ver com seguir regras ultrapassadas de "o que é masculino ou não", mas sim com ser fiel a si mesmo, assumir suas escolhas e bancá-las sem medo batendo no peito. E isso, sim, é coisa de macho.


Edit: Não estou falando que todo homem deve namorar uma mina trans não, galera. Só que, caso um cara se apaixone por uma e eventualmente ame ela, pedir ela em namoro e assumir batendo no peito é uma atitude de macho, e muitas pessoas discordam.

Edit 2: Pelo amor de Deus cara, tem gente que nunca teve aula de interpretação na vida, então com todo respeito, vou precisar desenhar: EU NÃO TÔ FALANDO QUE CORAGEM É CARACTERÍSTICA MASCULINA OU QUE MULHER NÃO PODE/DEVE SER CORAJOSA. EU TÔ USANDO UMA RETÓRICA QUE PRATICAMENTE TODO MUNDO JÁ ESCUTOU - "isso é coisa de macho"."


Link: https://www.reddit.com/r/opiniaoimpopular


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Basta uma segunda olhada ou um pouco mais de observação para notar que não nasci no gênero ao qual vivo hoje, e isso gera alguns "problemas", tanto à mim quanto para quem está ao meu lado.

É neste ponto que este texto me fisgou, pois é quase cirúrgico ao por em palavras muito das minhas próprias percepções. E antes que apontem os dedos, mulheres são farinha do mesmo saco, iguais aos homens que tanto criticam, também têm dificuldades iguais ou até mais. Sobre minha transexualidade, lembro bem de uma ex que disse que "andou pensando" e chegou a conclusão que poderia namorar uma mulher; respondi que eu não era uma mulher qualquer e sim uma trans. É sutil, mas duas mulheres bi ou somente lésbicas são fetiches em alguns círculos, mas ai de você se pensar namorar uma trans... é logo desencorajada de seguir em frente com esta loucura.


De mulher pra mulher

As pessoas muitas vezes não fazem ideia das situações que pessoas trans passam no dia a dia. São micro agressões continuadas e frequentes, todo santo dia, muitas vezes vindas de parentes, amigos e pessoas amadas. Sabe o tal "andei pensando"? Não é intencional, eu sei, mas machuca pra burro e não deixa de causar um sentimento de rejeição que fica ali, velado. Esperasse que seu parceiro(a) vai dar apoio, conforto e enfrentar essa dura realidade junto com a gente, por amor e de livre e espontânea vontade, a gente não espera saber que somos ainda uma indecisão na vida de quem já está conosco. Parece bobo e simples, mas em se tratando de trans, assumir publicamente um relacionamento é enxergado como um ato de extrema coragem, algo que a gente pode encaixar realmente nesse conceito abstrato "de macho".

Tanta rejeição e insegurança afetiva advindas já da infância e de várias relações sem sucesso culminam em um quadro já bem discutido na psicologia, o apego evitativo.


Apego


É um vínculo afetivo que se caracteriza por uma ligação estreita entre o senso de segurança de uma pessoa e o relacionamento com outra. Acredita-se que seja um comportamento biologicamente programado. Também trata-se de uma característica presente em todos os tipos de amor, seja na amizade, na família ou no romance. Em resumo, teoriza-se que existam quatro tipos de apego.



Segundo a linha da teoria do apego, a relação entre bebê e cuidador é uma grande influenciadora na maneira como as pessoas vão formar os seus vínculos na vida adulta. Conforme a atenção que recebe durante a primeira infância, uma pessoa tem mais facilidade ou mais dificuldade de criar laços profundos.


Apego evitativo


Casca grossa...? Para quê? Porquê?

Descobri depois de muitas conversas e sessões com psicólogos que este é o meu modus operandi do apego. É um estilo de apego que se caracteriza pela evasão de intimidade, proximidade emocional e sentimentos ao menor sinal de desprezo e incerteza. É uma forma de autoproteção que se desenvolve na infância e pode se estender até a vida adulta. E sim, caros leitores, é um mito achar que uma pessoa com apego evitativo seja indiferente. Falo por experiência própria que sempre dei meu sangue em minhas relações, desde que não pairasse a intuição de que seria enganada, traída ou machucada.


O apego evitativo pode ser causado por negligência na infância, traumas ou abusos sérios.


Algumas características do apego evitativo são: 

  • Evitar se abrir e compartilhar sentimentos
  • Ter dificuldade em expressar emoções
  • Ser indiferente aos próprios sentimentos
  • Ter baixa autoestima
  • Sentir-se incapaz, sem atrativos ou inferior a outras pessoas
  • Ter um senso de independência e autossuficiência elevado


Logo percebe-se que pessoas com apego evitativo são ligeiras para escapar de situações de vulnerabilidade emocional apenas por medo de se machucar ou por simplesmente não saberem como "baixar os escudos". São pessoas que aprenderam a se virar sozinhas emocionalmente desde muito cedo. São pessoas que nunca pedem ajuda justamente por terem aprendido a não confiar em seus cuidadores quando criança. São pessoas que na infância estenderam a mão em busca de ajuda emocional e foram ignoradas ou punidas. Por outro lado, como falado no texto do reddit, os candidatos(as) ao posto de parceiro(a) muito dificilmente se mostrarão seguros diante de tanta pressão social por conta de um relacionamento com pessoas trans. 

Logo, alguém com apego evitativo que tenha um parceiro(a) que demonstra dissonância em suas palavras e ações, isso é diz uma coisa e faz outra contrária; que tem muitos segredos e prefere ficar com seu relacionamento à sombra, em segredinho... Na verdade, este evitativo nunca vai estar disponível emocionalmente e a relação será uma fonte de sofrimento. Uma mentira descoberta ou uma mínima insinuação de falta de afeto já são motivos suficientes para um rompimento, e por experiência própria, bem doloroso. Afinal, o mandamento mais sagrado na cabeça do evitante:



Ora, sair de onde não se é bem vindo e amado é o básico da vida. Descobri isso depois de relações aonde minhas parceiras disseram que não ligavam para o fato de eu ser trans por exemplo, o que durou até chegar aos ouvidos de amigas, parentes e outros possíveis "ficantes mais normais", ora pois, quem quer se queimar no mercado dos contatinhos, não é?

Depois dessas desgraças afetivas, aprendi a não deixar ninguém me fazer sentir como um "meio-homem", "uma mulher incompleta" ou alguém com alguma doença mental e cérebro mal formado; acreditem, já ouvi todas essas e mais muitas outras. Decidi ficar sozinha e curtir minha transição de gênero em paz.

Um belo dum dia, recebi uma poesia sobre tempo e beleza, acompanhados de um convite para tomar café no horário e local mais badalado da cidade... De um homem CIS. Confesso que jamais passou na minha cabeça sair romanticamente com homens (o cheiro me incomoda e aniquila qualquer desejo), mas, já na chuva, porque não se molhar?!

Que surpresa, sem vergonha e sem freios por eu ser trans, sem "eu vou pensar" se fico com você, sem "como irei te apresentar para minha família", sem "o que meus amigos vão achar?", sem "eu até te assumiria", sem "o pessoal fala bastante mas eu não ligo de ficar com uma trans". Mais alguns encontros e meus receios de estar sendo sacaneada novamente foram se dissipando, percebi finalmente na vida o que era respeito, honestidade, confiança e humildade... Pois é... Foi neste momento que percebi que relações não devem ser doloridas e difíceis, não devem vir acompanhadas de toda uma sociedade com seus inúmeros preconceitos. Uma boa relação nasce da vontade de duas solidões dispostas a se protegerem. Uma boa relação não nasce do interesse em dinheiro ou status social. Uma boa relação não nasce de ressentimentos e desejo de poder. Uma boa relação não nasce de joguetes e meias verdades.

Demorou pra eu aprender que o meu bem deveria ter sido inegociável. Que eu não deveria me submeter, nem tolerar nada que me machuque. Demorou, mas aprendi.

Lembrando que, isso tudo vindo de um homem CIS, hoje, demonizado pela sociedade e que muita mulher faz discursos de ódio.


Amenizando o apego evitativo


Depois desta experiência, soube que estive por muito tempo de espada e escudo levantados e decidi baixá-los finalmente. Um apego evitativo não desaparece, o traço formado na infância é até a morte, mas pode ser muito amenizado; é tratável com autoconsciência, boa vontade, esforço e muita terapia, entre os passos para amenizar que aprendi:


  • Trabalhe com um terapeuta especializado em questões de apego
  • Explore e dê sentido às suas experiências passadas (essa parte foi a que mais doeu)
  • Identifique mudanças a serem feitas (sinceridade consigo, muitos sinceridade)
  • Pratique padrões mais saudáveis (evite pessoas que "andam pensando se gostam de você")
  • Aprenda a reduzir a ansiedade e o medo em relação à comunicação (bota pra fora o que o coração quer dizer)
  • É possível uso de ansiolíticos e antidepressivos

Estratégias de enfrentamento 


  • Encontre ambientes seguros para praticar a vulnerabilidade emocional
  • Aprender a lidar de forma saudável com os relacionamentos
  • Colocar-se em primeiro lugar (aprenda a dizer não)
  • Saber se comunicar
  • Aproveitar a solitude
  • Desenvolver a paciência

Reflexões 

  • Considere que o amor não dói e nem por isso deixa de ser real (não romantize manipuladores)
  • O amor não precisa de condições para existir ou continuar existindo (corte pessoas chantagistas da sua vida)
  • Reconheça que a verdadeira intimidade nasce da segurança que seu parceiro(a) oferece, não do controle, medo ou ameaças (O poder entra por uma porta e o amor sai pela outra. Arly cravo)
  • Aprenda que nem todo silêncio significa abandono, nem toda distância representa rejeição


Depois de tudo isso, não estou dizendo que todos devem gostar e/ou namorar uma pessoa trans, mas seria muito mais interessante que pessoas valorizassem mais sentimentos e vontade de construir algo duradouro do que dar ouvidos a quem nem paga suas contas. Se algum dia você realmente se apaixonar por uma pessoa trans, não renegue o que sente, seja firme e seguro. Não sentir vergonha é uma coisa, assumir e ter firmeza é outra bem diferente.

Vou contar que a quantidade de pessoas que esculhambam de dia, na rua, no mercado, na padaria, na farmácia, em mensagens privadas de redes sociais é incalculavelmente grande, mas na calada da noite, quando ninguém está vendo, voltam para procurar aquilo que desprezaram, afinal, algo que aprendi em 12 anos trabalhando com vendas é que quem desdenha demais quer comprar, só não têm coragem e competência em admitir, isso não é pra qualquer um, isso é "coisa de macho".

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