O mito das almas gêmeas de Aristófanes



Imaginem uma festa onde os convidados ficam bêbados e viram filósofos e começam a pensar e argumentar sobre diversos assuntos. Parece muito clichê? Mas e se eu te disser que um dos maiores mitos românticos apareceu nestas quase exatas condições?

Platão, no Simpósio 189c-193e, relata que em um banquete oferecido a Sócrates, os oradores competem para ver quem consegue fazer o melhor discurso sobre o amor. sumpósion, em grego, é em geral traduzido como banquete, mas, no sentido atual, equivaleria a uma festa mundana, em que quase sempre se bebe mais do que se come. Trata-se, pois, de um festim na casa de Agatão, poeta trágico ateniense. Sócrates é o mais importante dentre os homens presentes. Entre outros, também ali estão Aristodemo, amigo e discípulo de Sócrates; Fedro, o jovem retórico; Pausânias, amante de Agatão; o médico Erixímaco; Aristófanes, comediante que ridicularizava Sócrates, e o político Alcibíades.

Erixímaco, médico, terminou seu discurso e agora é a vez de Aristófanes, o famoso dramaturgo cômico.


O ser humano primevo


Aristófanes começa dizendo que no tempo dos deuses havia uma civilização onde a harmonia e amor reinavam, pois esta civilização tinha sido criada por Vênus/Afrodite e Eros/Cupido.

Uma civilização muito, muito diferente… Os seres possuíam quatros braços, quatro pernas, duas cabeças e dois troncos distintos.

A Mitologia Grega conta que Zeus declarou guerra ao seu pai Cronos e aos demais Titãs com a ajuda de Gaia. E durante cem anos nenhum dos dois lados chegava ao triunfo. Gaia foi até Zeus e prometeu que ele venceria e se tornaria rei do universo se descesse ao Tártaro e libertasse os Ciclopes e os Hecatônquiros, filhos de Gaia.

Ouvindo os conselhos de Gaia, Zeus venceu Cronos, com a ajuda dos filhos libertos da Terra e se tornou o novo soberano do Universo. Todavia, Zeus realizou um acordo com os Hecatônquiros para que estes vigiassem os Titãs, que Zeus voltou a aprisionar no fundo do Tártaro. Gaia então se revoltou com a traição de Zeus e lançou mão de todas as suas armas para destroná-lo.

Como vingança ela pariu incontáveis Andróginos, seres com quatro pernas e quatro braços que se ligavam por meio da coluna vertebral terminado em duas cabeças.



Essa criatura primordial era redonda: suas costas e seus lados formavam um círculo e ela possuía quatro mãos, quatro pés e duas cabeças com duas faces exatamente iguais, cada uma olhando numa direção, pousada num pescoço redondo. A criatura podia andar ereta, como os seres humanos fazem, para frente e para trás.

Mas podia também rolar sobre seus quatro braços e quatro pernas, cobrindo grandes distâncias, velozes como um raio de luz.

Os Andróginos surgiam do chão em todos os quadrantes da Terra, sua força era extraordinária e seu poder imenso. E isso tornou-os ambiciosos, levando-os a desafiar os Deuses e a escalar o Monte Olimpo com a intenção de destronar Zeus e destruir os Deuses.

Reunidos no conselho celeste, Zeus aconselhado por Têmis, decidiu que ele e os demais Deuses deveriam acertar os Andróginos na coluna, de modo a dividi-los exatamente ao meio, para que se tornassem menos poderosos, sem precisar aniquilá-los.

Pois aniquilar as criaturas significaria ficar sem os sacrifícios, as homenagens e a adoração. Mas a insolência das criaturas era totalmente inadmissível, e por isso deveriam ser castigadas.

Portanto o Grande Zeus decidiu deixá-los viver, mas divididos, para torná-los mais humildes e fracos e assim diminuir seu orgulho, fazendo-os andar sobre duas pernas, diminuindo sua força e poder, com a vantagem de aumentar seu número, à medida que as criaturas eram cortadas em dois.



Apolo virou suas cabeças, para que pudessem contemplar eternamente sua parte amputada, como uma lição de humildade. Apolo também curou suas feridas, deu forma ao seu tronco e moldou sua barriga, juntando a pele que sobrava no centro formando o umbigo, para que eles lembrassem do que haviam sido um dia.



Vénus e Eros tentaram impedir, mas nada puderam fazer.

Existiam três tipos desses seres: Andros, de onde originaram-se dois homens, que apesar de terem seus corpos agora separados, tinham suas almas ligadas, por isso ainda eram atraídos um pelo o outro. O mesmo ocorrendo com os outros dois seres Gynos e Androgynos. Andros deu origem aos homens homossexuais, Gynos às lésbicas e Androgynos aos heterossexuais.

Foram dois dias e duas noites de muita tempestade, raios, trovões e fúria… muita fúria! Os corpos eram divididos pelos relâmpagos e as metades ficavam separadas, algumas partes eram levadas pelas águas, pelos ventos.

Assim muitos se perderam, muitos dos que ficaram sozinhos conseguiram sobreviver, mas pararam de viver, pois já não tinham mais a harmonia, a perfeição, o equilíbrio de antes. Deixaram de ser felizes e completos; passaram somente a existir.



As criaturas poderiam continuar vivendo e com o tempo eles esqueceriam o ocorrido e apenas perceberiam seu desejo por sua outra parte. Um desejo jamais inteiramente saciado no ato de amar, porque mesmo derretendo-se no outro pelo espaço de um instante, a alma saberia, ainda que não conseguisse explicar, que seu anseio jamais seria completamente satisfeito. E a saudade da união perfeita renasceria, nem bem os últimos gemidos do amor se extinguissem.


E esta é a nossa história. De como um dia fomos um todo, inteiros e plenos. Tão poderosos que rivalizávamos com os deuses. É a história também de como um dia, partidos ao meio, viramos dois e aprendemos a sentir saudades. 



E é a razão dessa busca sem fim do abraço que nos fará sentir de novo e uma vez mais, ainda que só por alguns momentos, a emoção da plenitude que um dia, há muito tempo, perdemos.





Mundo moderno

O mito grego dá uma boa explicação na origem da homossexualidade e mais ainda no sentimento de saudade durante uma paixão. Mas também revela a angústia da solidão e a utopia de encontrar a "alma gêmea". Talvez também, nos explica o dilúvio de aplicativos de relacionamentos que aparecem todo santo dia. 

Carl Gustav Jung, bem como alguns de seus seguidores, interpretaram o mito da androginia, entendendo-o como uma manifestação simbólica da condição da psique humana: todo homem transporta no seu inconsciente um princípio feminino e toda mulher, inversamente, um princípio masculino.

A utopia inconsciente mais profunda, manifesta no mito do andrógino, é restaurar a perdida unidade primeva, em que masculino e feminino estariam em harmonia. Assim, a grande busca da humanidade é não só a reunificação entre os sexos, mas também a reunificação dos princípios masculino e feminino, dentro de cada um de nós.

O andrógino é aquele que não reprime as características que convencionalmente pertencem ao sexo oposto, como por exemplo, a sensibilidade e a perda do medo do afeto, no homem; e a inteligência criativa na mulher. Só é andrógino aquele que é capaz de reunificar os opostos dentro de si: o masculino e o feminino, a atividade e a passividade, mente e corpo.


No mais...


Vinícius de Morais nos escreve sobre a promessa e a frustração de encontrar nossa alma gêmea:

"A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida"

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