Paradoxo da identidade

 


A obra "One piece" nos mostra a jornada do pirata Luffy em busca de um ambicioso sonho, ao longo de sua jornada recruta membros para sua tripulação; um belo dia seu navio literalmente cai do céu. O navio sofreu danos tão sérios ao ponto de quebrar a quilha da embarcação; logo que pudera, a tripulação atraca em water 7 para reparos, porém todos receberam a triste notícia que o navio não poderia mais navegar, e mesmo trocando todas as peças o navio não seria mais o mesmo e perderia "seu espírito". Luffy decide então que eles irão trocar de navio, o que causa um desentendimento com um de seus imediatos que não aceita a decisão, ele e Luffy então entram em um embate para manter ou não a embarcação.

A cena mais triste de One piece

Apesar de ser um manga/anime, o dilema de consertar ou não o navio é baseado no paradoxo do navio de Teseu, funciona assim:

Plutarco, propõe o seguinte contexto: imagine que Teseu parte, a navio, de um ponto A até um ponto B.

Até aí, muito simples, porém, ao longo da viagem (que durou cerca de 50 anos), peças da embarcação vão sendo substituídas conforme se desgastam até que todas as partes tenham sido trocadas. Fica então o questionamento: o navio que chegou em B seria o mesmo que partira de A, ou já poderia ser considerado outro? Caso um segundo barco fosse construído com os restos descartados do barco inicial, qual deles seria de fato considerado o navio de Teseu?


Heráclito comparou o navio e suas peças a um rio: Suas águas são constantemente renovadas, e não é possível banhar-se no mesmo rio duas vezes, mas apesar disso o rio continua sendo o rio. Já Aristóteles, estabeleceu que uma coisa é definida por quatro causas: formal, material, final (intenção de quem construiu) e a eficiente (Como foi construída). Em sua análise, entre os pontos A e B, o navio só mudava sua causa material, então ainda era o mesmo.

Não existe qualquer consenso para responder à questão levantada por Plutarco. Outros filósofos de outros tempos tentaram responder definitivamente este paradoxo, alguns inclusive incluíram ainda mais questionamentos, quando o navio deixaria de ser ele mesmo? Quando trocassem a primeira peça, quando trocassem a última ou quando tivessem passado da metade? 

O que a filosofia grega não imaginava é que eventualmente alguém iria pensar no ser humano como foco desse paradoxo.

Imaginemos uma pessoa que teve a perna amputada e colocou uma prótese no lugar. Com a prótese ela é capaz de andar, e se for uma das mais modernas, é possível até que você nem consiga perceber a diferença se ela estiver de calça comprida. É um ser humano com uma parte não original. A pessoa com uma perna mecânica ainda é uma pessoa? É tão óbvio que dá até preguiça de escrever, mas uma prótese não faz um humano ser menos humano. Estaria aí a resposta para o paradoxo do Navio de Teseu?

Claro que não. Seguindo o critério proposto por Aristóteles, a conclusão a que chegamos é que não é uma perna que nos faz definir o que é um ser humano. A pessoa amputada sempre foi uma pessoa, com ou sem a prótese. Trocar uma perna de carne e osso por uma de fibra de carbono não muda a essência desta pessoa.

Podemos ir mais longe ainda: com raras exceções, as células do corpo humano morrem e são substituídas por novas o tempo todo. Renovação celular é um padrão da vida: em média, um corpo humano se renova de 7 a 10 anos. E isso vale para todos os órgãos.

Mas ainda não vi bêbados discutindo se uma pessoa ainda é uma pessoa se todas suas células forem trocadas. Ai, voltando para o Aristóteles, não são as partes, não são os órgãos, não são nem mesmo as células. O ser humano é definido como um ser único pelo seu conjunto. O que vale para o ser humano é algo que vai além dos elementos que o constituem, é a ideia do que torna uma pessoa única. Aquela combinação específica pode mudar inteira de dez em dez anos, mas a nossa percepção sobre ela permanece estável. Não tem paradoxo nos seres humanos? Tem sim...

Uma pessoa sem memória nenhuma ou até mesmo aquela pessoa que você esqueceu no passado, pode até ser vista como um ser humano, mas não consegue mais continuar as relações que tinha antes disso. Sem uma memória sobre uma pessoa, você não tem relação com ela. Sem relação com ela, você é só um amontoado de células com a forma de uma pessoa. O que não exclui a construção de novas memórias, mas seria uma nova relação e seriam outras discussões...

A questão do paradoxo nunca foi se o navio é um navio, é óbvio que ainda é um navio. A dúvida filosófica era se o navio que estamos vendo na nossa frente, que teve todas suas partes trocadas por novas, ainda é o navio de Teseu. O fato de ter sido chamado de Navio de Teseu durante todos os anos que existiu faz dele o navio de Teseu, ou só as partes originais dele quando começou a ser chamado de navio de Teseu que contam?

Se você conhece alguém há mais de 10 anos, é provável que esteja conversando agora com alguém que é 99,999…% diferente em células do seu primeiro encontro. O que mantém a pessoa estável na sua cabeça é sua ideia sobre ela, a informação que você guardou no seu cérebro sobre essa pessoa. O que o outro é está na sua memória. Se você esquecer tudo sobre aquele indivíduo, ele passa a ser apenas uma pessoa aleatória, o que aliás, é objetivo de muitos ex-pares românticos...

O Paradoxo do Navio mostra como é difícil determinar quando um objeto se torna diferente, para além disso, também é uma reflexão sobre construção de identidade e mudanças ao longo da vida. Seríamos ainda a mesma pessoa se mudássemos nosso nome, gênero ou aparência? Nossa real identidade vem através de memórias, experiências e crenças?

Bem, se você expulsou alguém em sua vida porque engordou além da conta, fez tatuagens ou passou a "zero" na cabeça... Talvez o que importa aqui seja composição ou aparência física e nada mais mesmo. E ai vale uma outra reflexão... vive-se apenas de aparência?

Comentários

Postagens mais visitadas