Um pouco sobre: Estigmas, descobrindo que migalha não é pão.

 


Dia desses estava em um encontro pra lá de despretensioso, mas que mostrou-se tão agradável que o diálogo dentro das 3 horas que durou logo evoluiu para perguntas sobre relacionamentos. Fui instigada a me expressar sobre o que esperava de um bom relacionamento, tomei meu tempo; respondi no dia seguinte por mensagem de texto de forma suscinta: Respeito, momentos agradáveis e talvez a possibilidade de um futuro. Logo fui questionada novamente, nada de filhos? Nada de casamento? Nada de festas? Grandes romances? Nada de sonhos conjuntos? Nada de amizades como casal? 

Expliquei que alguns sonhos precisaram morrer dentro de mim por conta de uma transição de gênero e então seria apenas isso mesmo, nada de morar juntos, nada de família, nada de investimentos conjuntos, nada além do essencial. Como resposta recebi um "nossa que fácil deve ser ficar com você" (como se eu já houvesse me oferecido para tal coisa), tudo muito simples.

Já estava prestes a caminhar novamente na trilha de João e Maria, marcada com migalhas de pão com o intuito de não se perderem no caminho de volta floresta adentro, acontece que assim como na história, migalhas não servem como marco seguro para traçar caminho algum e assim, como na história também, logo as migalhas são devoradas e acabamos perdidos e talvez fiquemos à mercê de alguma bruxa má.

Parei alguns dias para refletir sobre minha própria simploriedade em relação ao que exigir de um relacionamento e logo veio um gosto amargo saído diretamente de experiências passadas e de como estava me enxergando e me colocando em um patamar muito mais abaixo do que realmente gostaria de estar; assim como a genial Sra. Lispector em algum de seus escritos: "eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco.". Estava novamente sinalizando que poderia me contentar apenas com o essencial, o básico indispensável, apenas o arroz, nada de proteínas ou legumes... 

Se você já se sentiu assim ou se alguém já te falou que você aceita migalhas demais, ou se contenta com muito pouco em termos afetivos, talvez seja o momento de rever suas relações e entender melhor o porquê disso estar acontecendo. Muito tem a ver com autoestima, claro, existem milhares de textos e vídeos por ai explicitando sobre; mas o que pouca gente te conta é isso pode ser também um estigma internalizado.


Estigma


A palavra tem origem no grego "stígma", que significa marca ou sinal. Na Grécia Antiga, estas marcas corporais eram utilizadas para identificar visualmente a condição de alguém excluído de alguns círculos de convívio. Estas marcas poderiam ainda ser de nascença ou provocadas por queimaduras ou cortes.


Marca física do sacrifício no personagem Guts em Berserk


Em sentido figurado atual, social/cultural, estigma tem o significado de algo que é considerado ou definido como indigno, desonroso ou com má reputação. Esta "marca" não é necessariamente física, pode ser uma marcação simbólica que isola e desvaloriza pessoas ou grupos. É acima de tudo uma condição de não possuir atributos considerados aceitáveis por uma sociedade, e por isto, o portador do signo é inabilitado para a aceitação social plena. Sim caros, o estigmatizado ainda pode conviver em sociedade, porém, restrito e de forma inferiorizada.

Deste modo, tudo o que não é considerado um padrão cultural e social é tido como um estigma para aquela sociedade. É entalhado algo em um indivíduo que desagrada visualmente ou moralmente e dai por diante, apenas ao olhar a marca, já se tem uma ideia pré-concebida desta pessoa (e sim, é um dos mecanismos que compõem preconceitos). 


Estigmatização


Percebam que antes de tudo, a "marca" não é imbuída pelo próprio indivíduo e sim por aqueles que o cercam, logo, não há como ser uma simples questão de "auto" estima ou amor "próprio". Aonde quer que o "marcado" vá, ele será visto e tratado de forma diferenciada, geralmente inferior.

Estigmatização é o processo pelo qual pessoas ou grupos são rotulados, estereotipados ou discriminados com base em características, comportamentos ou associações que são considerados indesejáveis ou diferentes aos olhos da sociedade ou de um grupo dominante. Ocorre pelos seguintes passos:

Rotulação: Primeiro, destaca-se uma característica, comportamento ou associação como diferente ou indesejável.

Estereotipização: A seguir, são criadas generalizações sobre o grupo rotulado.

Separação: Os estigmatizados são colocados em uma categoria separada, distanciando-os do "nós" e aproximando-os do "eles".

Discriminação: Pessoas estigmatizadas enfrentam rejeição, são evitadas ou sofrem discriminação.

Perda de status: A pessoa ou grupo estigmatizado tem sua posição na sociedade diminuída, perdendo inclusive acesso a direitos básicos.


Infelizmente, com o tempo e intensidade, muitos estigmatizados internalizam e "resignam-se" às suas marcas, ocorrendo então o processo de internalização de estigmas e passam a pensar que talvez sua "marca", apesar de natural, seja algo ruim mesmo e que o público ao seu redor esteja certo de fato, uma vez que aonde quer que vá, atrai coisas ruins ou sente que sua "marca" lhe "rouba oportunidades". É altamente provável também que este personagem passe a nutrir sentimentos de vergonha ou inferioridade por si próprio.

Não raramente também, estigmatizados vivem em isolamento, pois pessoas "não estigmatizadas" evitam contato e convívio para não serem associadas ao estigma ou por não aguentarem a pressão social que diz que o estigmatizado deve ser mantido longe da luz social. Mais uma vez teremos o reforço da ideia que a "marca" faz o indivíduo inferior.



Vitimização

 

Até aqui falei em linhas muito gerais, mas poderia esta falando sobre drogados, ex-presidiários, negros, judeus, homossexuais, pessoas com transtornos mentais, umbandistas no Brasil, árabes nos EUA e o que mais você conseguir imaginar.

Como de costume, haverão grupos diversificados, alguns estigmatizados; outros não estigmatizados, mas que entendem o que é um estigma e suas consequências; grupos perpetuadores de estigmas. E haverão também grupos que além de perpetuarem, ainda pregam o discurso da culpabilização da vítima. Funciona assim, um ídolo do grupo estigmatizado é escolhido como "case de sucesso" e a partir dele, nasce o discurso "se ele pôde, você também pode, pare de se vitimizar" e todas as barreiras que impedem o desaparecimento de estigmas passam a ser vistas como simples "má vontade" e incompetência.



E sim, existem muitas pessoas por ai que se escondem atrás de seus estigmas, inconscientemente ou não, por exemplo, Judeus pregando genocídio palestino fazem com que os enxerguemos como eternas vítimas do holocausto da segunda guerra. Falado este parêntese de mau caráter, repetirei que um estigmatizado aonde quer que vá será mal visto, não se trata de uma escolha do indivíduo e sim de uma imposição quase sistêmica, como racismo por exemplo, não tem como o indivíduo alvo do racismo fazer o mesmo esforço de outrem sem o estigma e obter resultados semelhantes.


Desestigmatização


Diante dos exemplos citados aqui ou de quaisquer outros imaginados, nota-se que UM indivíduo, uma minoria ou um grupo muito pequeno é muito frágil para romper com um estigma, mas convenhamos que se um estigma foi ali colocado, ele também pode ser retirado; mas é preciso saber que assim como nenhum incêndio começa grande, estigmas também demoram para serem exorcizados, em especial os internalizados.

Voltando com meus botões, aqui, começo meu trabalho de formiguinha, tijolo a tijolo e tudo isso por um simples encontro casual, pasmem.

Cedi muitos anos aos estigmas impostos à mim no que dizem respeito à relacionamentos afetivos e muitos "nãos" também:



“Se fui rejeitada por quem diz que me ama e me conhece, que esperança de cativar amor verdadeiro em desconhecidos?”

"Mulher trans é vulgar e fetichizada, só serve para sexo"

"Nenhum interesse romântico irá aparecer e se aprofundar só pela minha aparência"

“Ninguém pode saber, tem que ser no sigilo”

“Não sou digna de afeto”

"Não mereço mais que isso mesmo"

"Sou uma aberração"

"Mulher trans é feia"



Aqui, separarei como notas musicais, seguindo uma sequência harmônica para dar talvez origem a algum som...

Primeira nota é aceitar que o mundo mudou de forma positiva, ainda está longe de ser perfeito, mas mudou.

Segunda nota é perceber que perpetuadores de estigmas morrem ano após ano, muito bem enterrados com seus preconceitos e ignorância (um "já vai tarde" para aquele banqueiro perpetuador de estigmas).

Terceira nota é desacreditar que devemos permanecer e aceitar com o estereótipo dado às mulheres trans (vulgar, rasa, sem futuro, invisível...), eu mesma nunca segui ou me encaixei em nenhum molde que seja. E além disso, hoje temos deputadas, médicas, advogadas, farmacêuticas, empresárias que trouxeram à tona que somos mais que meros corpos físicos e que não precisamos viver às escondidas como baratas.

Quarta nota é saber que todo ser humano merece afeto, igualdade, justiça e acima de tudo isso, o direito de sonhar e perseguir sonhos.

Quinta nota é aceitar a duras penas que por azar ou carência, pessoas incompatíveis com meus sonhos e valores entraram pela porta da frente de minha vida, fizeram arruaça e saíram sem ajudar a limpar a bagunça deixada... É perceber que algumas pessoas realmente não querem nosso bem, querem sugar o que podem até encontrar outra fonte mais valiosa e muitas vezes ainda o fazem não propositalmente, mas por estarem em um estado deplorável de carência, dor e/ou ignorância.

Sexta nota é dizer que o estigma que me foi dado, não é meu para ser carregado e sim de quem tem algum problema interno mal resolvido, não mereço ser a vergonha ou o segredo de ninguém.

Sétima nota é exigir que mereço afinal, mais que migalhas, mereço sim, um banquete completo sem azedos de traumas passados e sem o amargo de lágrimas de tristeza; exigir que não quero apenas pão, como pensava a princípio.

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