Um pouco sobre: Cérebro adicto
Dia destes perguntaram minha opinião sobre adictos (viciados), respondi secamente: "Que morram longe de mim". Talvez a linguagem do meu querido Pará seja dura e de difícil interpretação para quem mora no sul brasileiro, mas esta expressão significa para nós paraenses, que fiquem longe ou que se possível, eu possa viver sem entrar em contato, não se trata de desejar a morte literal ou abandonar um ente querido necessitado; fato é que quase levei uma advertência e ainda tomei um sermão sobre insensibilidade.
O termo adicto é utilizado para designar casos extremos, onde o indivíduo perde tanto o controle de si que deixa de viver, existe apenas para buscar o seu objeto de vício. Acontece que na prática, é muito difícil quem não tenha algum tipo de "vício", a diferença vai estar em sua configuração cerebral e no vício de escolha.
Abaixo, enxuguei e adaptei trechos do excelentíssimo livro nação dopamina, da Anna Lembke. A ideia foi deixar mais curto e menos pessoal.
Imagine que seu cérebro contenha uma gangorra. Quando não há nada em ambos os lados, ela fica nivelada com o chão. Quando sentimos prazer, a dopamina é liberada em nosso circuito de recompensa, a gangorra inclina-se para o lado do prazer. Quanto mais ela se inclina, e quanto mais rápido, maior o prazer que sentimos.
Acontece que existe uma pegadinha no funcionamento da gangorra: Ela quer permanecer nivelada, ou seja, em equilíbrio. Ela não quer ficar inclinada por muito tempo para um lado ou para outro. Sendo assim, sempre que a balança se inclina em direção ao prazer, mecanismos autorreguladores poderosos entram em ação para nivelá-la novamente. Esses mecanismos autorreguladores não exigem um pensamento consciente nem um ato de vontade. Eles simplesmente acontecem, como um reflexo.
Vamos imaginar esse sistema autorregulador como pequenos monstrinhos pulando no lado do sofrimento na gangorra, para compensar o peso do lado do prazer. Os monstrinhos representam o trabalho da homeostase: a tendência de qualquer sistema vivo a manter uma estabilidade fisiológica.
Depois que a balança está nivelada, ela continua a se inclinar numa força igual e oposta para o lado do sofrimento.
Na década de 70, os cientistas sociais Richard Solomon e John Corbit chamaram essa relação recíproca entre prazer e sofrimento de teoria do processo oponente: "Qualquer afastamento prolongado ou repetido de neutralidade hedonista ou afetiva... tem um custo. Esse custo é uma "reação posterior", com valor oposto ao estímulo... Neste momento, caro leitor, você deve ter lido e relido este parágrafo algumas vezes sem entender muito bem... Para facilitar, em termos práticos, toda ação tem uma reação ou tudo que sobe deve descer.
Neuroadaptação
Todos nós experienciamos o desejo na sequência do prazer. Seja buscar um segundo pacote de batata frita, seja clicar no link para mais uma rodada de vídeo games, é natural querer recriar aquelas boas sensações, ou tentar não deixar que sumam. A solução simples é continuar comendo, ou jogando ou assistindo, ou lendo. Acontece que há um grande problema nisso.
Com a repetida exposição ao mesmo estímulo ao prazer, ou a um estímulo semelhante, o desvio inicial para o lado do prazer fica mais fraco e mais curto, e a resposta posterior para o lado do sofrimento mais forte e mais demorada, um processo tecnicamente batizado de neuroadaptação, ou você pode chamar no seu dia-a-dia de tolerância também. Ou seja, com a repetição, nossos monstrinhos ficam maiores, mais rápidos e mais numerosos, e precisamos de uma maior quantidade da droga de nossa escolha para obter o mesmo efeito de antes.
A tolerância é um fator importante no desenvolvimento da dependência.
Imagine que você leia seu livro preferido pela segunda vez e sinta que foi agradável, mas não tanto quanto na primeira vez. Na quarta vez (tipo 20.000 léguas submarinas para mim, meu preferido), seu prazer será significativamente menor. A releitura nunca se igualou àquela primeira vez. Além disso, a cada leitura, provavelmente ocorrerá uma sensação maior de insatisfação, e um desejo mais forte de recuperar a sensação que você teve ao lê-la pela primeira vez. Conforme você fica "tolerante" ao seu livro preferido, talvez você se force a procurar formas novas e mais potentes da mesma "droga" para tentar recuperar aquela sensação inicial.
Com o uso prolongado de drogas mais fortes, o equilíbrio entre o prazer e o sofrimento acaba passando para o lado do sofrimento. Nosso ponto de ajuste hedônico (prazer) muda, conforme nossa capacidade de vivenciar prazer diminui e nossa vulnerabilidade ao sofrimento sobe. Imagine os monstrinhos acampados no lado do sofrimento da gangorra, com barracas, colchões infláveis e churrasqueiras portáteis a reboque.
Opioides possuem liberação de altas doses de dopamina no caminho de recompensa do cérebro. Em pacientes sob um tratamento, de longo prazo, de altas doses de opioide (oxicodona, hidrocodona, morfina, fentanil) para dor crônica, por exemplo; apesar da alta dosagem desses medicamentos e do uso prolongado, a dor dos pacientes só tinha piorado com o tempo. Sabem por quê? Porque a exposição a opioides tinha feito com que o cérebro reprogramasse o equilíbrio prazer-sofrimento para o lado do sofrimento. Agora sua dor original estava pior, e eles tinham novas dores em partes do corpo que não costumavam doer antes.
Esse fenômeno, amplamente observado e verificado em estudos de animais, passou a ser chamado de hiperalgesia induzida por opioides. Algesia, do grego algesis, significa sensibilidade à dor. Além disso, quando esses pacientes diminuíam gradativamente os opioides, muitos deles experimentavam melhora na dor.
Nessas horas lembro de todos os clientes que reclamavam que medicamentos para dor intensa vinham com pouca quantidade em cada embalagem. Aqui o motivo de serem inclusas sob controle especial e o porquê de terem pouca quantidade. Também revela o motivo de tais pessoas nunca melhorarem de suas dores, tornaram-se adictos.
A neurocientista Nora Volkow e seus colegas demonstraram que o consumo pesado e prolongado de substâncias de alta dopamina acaba levando a um estado de déficit de dopamina.
Volkow analisou a transmissão de dopamina nos cérebros de controle saudáveis em comparação com pessoas dependentes de uma variedade de drogas, duas semanas depois de terem parado de usá-las. As imagens do cérebro são chocantes. Nas imagens de pessoas com dependência, que pararam de usar drogas duas semanas antes, a mesma região do cérebro em formato de feijão contém pouco ou nenhum vermelho, indicando pouca ou nenhuma transmissão de dopamina.
Uma vez que isto acontece, nada continua parecendo bom. Colocando de outra maneira, os jogadores do time Dopamina pegam suas bolas, suas chuteiras e vão pra casa.
Depois de usar compulsivamente sua droga de escolha, dificilmente você irá encontrar algo que verdadeiramente goste. É como se seu centro de prazer na droga tenha se esgotado, e nada pudesse revivê-lo.
O paradoxo é que o hedonismo, a busca pelo prazer por si só, leva à anedonia, a incapacidade de desfrutar qualquer tipo de prazer. É um choque e uma tristeza quando seus prazeres e fugas deixam de funcionar. Mesmo assim, é difícil parar.
Pacientes com dependência descrevem que chegam a um ponto em que a droga deixa de fazer efeito. Já não conseguem ficar surtados. Ainda assim, se não tomam a droga, sentem-se miseráveis. Os sintomas universais de retirada de qualquer substância que cause dependência são ansiedade, irritabilidade, insônia e disforia (estado caracterizado por ansiedade, depressão e inquietude).
Uma gangorra de prazer-sofrimento inclinada para o lado do sofrimento é o que leva as pessoas a terem recaídas, mesmo depois de terem mantido longos períodos de abstinência. Quando nossa gangorra está inclinada para o lado do sofrimento, desejamos nossa droga só para nos sentirmos normais (uma gangorra nivelada).
O neurocientista George Koob chama esse fenômeno de recaída levada pela disforia, no qual a retomada do uso é levada não pela busca do prazer, mas pelo desejo de aliviar o sofrimento físico e psicológico de uma retirada prolongada.
Importante ressaltar que a gangorra do prazer e sofrimento é acionada não apenas pela reexposição à droga em si, mas também pela exposição a sugestões associadas ao uso da droga. Aqueles "amigos" que te levam à droga; aquele ambiente que favorece o uso; aquela festa que vai rolar o uso. Em alguma postagem disse que "drogadictos buscam outros drogadictos para se relacionar, deixando-os restritos a um grupo sempre superficial, pouco estável e pouco duradouro", eis um dos motivos ai. Sabe o que te induz ao ciclo prazer-sofrimento também? Celular com redes sociais sempre à mão, quarto com TV e streamings; pornografia; sexualização generalizada; . É interessante repensar se temos hábitos ou se estamos sendo escravos da gangorra.
Há quem defenda que não é possível viver sem um tipo de "prisão", mas convenhamos que existem prisões melhores que outras e o quão mais contentes seríamos se ao menos pudéssemos escolher qual prisão habitar.
A boa notícia, sim! Temos uma. É uma grande aposta, MAS, se esperarmos tempo suficiente, nosso cérebro (geralmente) se readapta à ausência da droga, e restabelecemos nossa homeostase basal. Uma vez que nossa gangorra esteja nivelada, somos novamente capazes de obter prazer de recompensas simples e cotidianas: sair para uma caminhada, ver o sol nascer, aproveitar uma refeição bem feita.
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