Relações abusivas I - Como e porque
Quem é que não sonha em viver um grande amor ou até mesmo uma paixão, não é? Isso porque a solidão muita vezes é como a sede, vai se intensificando e em algum momento torna-se desesperadora a percepção de se sentir só. Acontece que para aliviar a sede de companhia, muitas pessoas se deixam envolver em relacionamentos pra lá de abusivos, aceitam beber e mergulhar em fontes duvidosas para saciar esta sede de qualquer jeito.
Por experiência própria, é de se surpreender que muitas das vezes não percebemos como adentramos o buraco que é uma relação abusiva; e mais surpreendente ainda é saber que isto serve tanto para o abusador quanto para o abusado. Sim caros! Muitos processos são sem querer querendo mesmo.
Não muito tempo atrás fiz uma espécie de escrita terapêutica, onde "assumi" minha culpa nas más escolhas românticas que havia feito na vida até aqui e algumas pessoas acharam estranho. Acontece que tanto vítima quanto abusador jogam em seus papéis na dinâmica da relação tóxica e SIM! A vítima tem lá sua parcela de "culpa" em ser abusada também (explico logo mais).
Longe de mim romantizar relacionamentos abusivos que geralmente culminam em agressão física, morte ou anos de sofrimento e terapias. Como dito, a maioria esmagadora dos abusos é inconsciente, ninguém nasce abusador ou vítima. Longe de mim também roubar o papel de terapeuta ou fazer um guia definitivo, mas vai que você caiu aqui e está desesperado por alguma informação. Irei, talvez, elucidar um pouquinho algumas considerações sobre dinâmicas tóxicas e abusivas.
Como começa
Parece estranho, eu sei, mas um relacionamento abusivo se inicia muito antes de se ter o relacionamento. Tudo começa na autoestima. É que logo após o nascimento, aprendemos a desenvolver nossas primeiras relações na infância com nossos pais, familiares ou quem estiver próximo a nós. Aprendemos como relações funcionam; como ter nossas necessidades básicas atendidas através de afeto e atenção.
Após observação, passamos a "copiar" este padrão relacional para a vida, assim, a forma que nos relacionamos depois de adultos vai depender de como observamos, interpretamos, e "copiamos" o afeto recebido na infância. É claro que na jornada até a vida adulta, podem ocorrer desvios, traumas e descobertas; afinal, quando tratamos do elemento humano, a única rigidez natural é a morte, todo o restante é mutável.
Como seres relacionais, necessitamos do olhar de validação do outro. Necessitamos da troca para nos sentirmos amados e aceitos, isso acontece de maneira consciente e inconsciente o tempo inteiro. O tal "self-made man" (homem que molda a si próprio sozinho) de Ayn Rand (revolta de atlas) é um mito (muito prejudicial em várias esferas aliás).
Também, a relação afetiva começa no nosso auto conceito, na maneira como nos vemos, como acreditamos ser; com base nisso e na "cópia" dos padrões de infância, desenvolvemos um modelo de vínculo. Este modelo irá vai nortear as nossas relações em todas as áreas da vida: com os amigos, com a família, no trabalho e é claro…. no casal!
Amor próprio e chocolate
Tomando consciência de que nossa percepção de nós mesmos está envolvida no nosso modelo de vínculo, o primeiro grande amor deve ser nós mesmos, SÓ QUE NÃO. Aposto que todo mundo que já chorou por alguém já ouviu essa frase sobre amor próprio, é um clichê tão antigo quanto a própria humanidade, acontece que ele é muito mal colocado a ponto de ser mal entendido, e já explico:
- Toda relação entre seres humanos é uma relação baseada em troca;
- Trocas obrigatoriamente devem ser o mais justas possível para que ambas as partes saiam contentes;
- Para que uma troca seja justa, é preciso saber o valor do que se está oferecendo e o valor do que se está recebendo;
- No caso de relações humanas, torna-se necessário saber o valor do que se tem a oferecer, torna-se necessário também saber o que pode ser aceito como pagamento desta troca;
- É possível por exemplo, AMAR comer uma determinada barra de chocolate, mas imaginem que a barra custa o valor de um salário mínimo;
- Caso seja você quem irá trabalhar o mês inteiro, somente você saberá o esforço necessário para ganhar o salário; caberá a você e somente a você decidir se seu esforço de um mês inteiro valeria algumas migalhas de chocolate que acabarão em poucos minutos.
- Oras... O esforço de um mês inteiro por alguns minutos de prazer...?
- Talvez, você chegue na conclusão de que nem sempre o VALOR a ser pago por esta barra vale o esforço e talvez você não ACEITE pagar o preço por tais migalhas. E o mesmo pode ser dito para objetos, relacionamentos, entretenimentos, vícios, empregos, pessoas...
Percebam então, que o tal amor próprio na verdade poderia ser ensinado também como autoconhecimento e auto aceitação? Saber o que se tem a oferecer, aceitar o que se tem a oferecer, conhecer e respeitar os próprios limites e saber o valor do que se tem a oferecer são o ponto de partida para relações humanas saudáveis.
Acontece que as pessoas ficam tão cegas pela carência e pelas faltas que acabam criando uma autoimagem falsa para conquistar o outro; a expectativa é de conseguir no outro, aquilo que elas gostariam de ter. E nessas projeções emocionais, não percebem que na verdade estão criando um relacionamento tóxico e abusivo.
Na prática, mais "para frente" no relacionamento, no momento de estreitar laços, isso causará muita dor e sofrimento e as ações desta pessoa com a falsa autoimagem serão quase sempre destoantes do discurso pregado, o famoso hipócrita mentiroso. Também, quase sempre haverão discursos com teor "me enganou/me iludiu", "o outro é quem mudou muito", "me sacrifiquei pelo outro" e por ai vai. O outro é quem carregará a culpa por uma falsa autoimagem que nem criou... Tenebroso não é?
Notem que chegamos na parte de sentir dor, ilusão e sofrimento sem nem sequer ter se envolvido de fato com outro ser humano. Pessoas assim são como bombas-relógio, não importa onde ou com quem se relacionem, já deu errado antes de começar, é apenas questão de tempo para explodirem em frustrações e acusações em cima do outro.
O abusador
A pessoa com perfil abusador, desenvolveu no cerne de sua estrutura psicológica uma personalidade permeada por insegurança extrema. Ela carrega um tipo de debilidade emocional. Provavelmente ela cresceu com falta de carinho, afeto, atenção, de olhar, de toque e de palavras. Não é incomum destas demonstrações acontecerem de forma confusa e paradoxal: “Eu te amo, mas eu te bato e grito com você”, ou “Eu te desqualifico, digo que você não vale nada, que só faz coisa errada… mas eu continuo aqui por você”.
Costumo dizer que cada um dá o que tem para dar, aqui no caso, o abusador quando criança, estabeleceu um vínculo inseguro com pais e cuidadores e lembrem-se, "copiou" este modelo começa a achar então que isso é amor porque assim lhe foi ensinado.
Na tentativa de regular-se internamente, são desenvolvidos mecanismos para tentar controlar a vida e as situações que estão à sua volta. Isso acontece, porque ela tem uma ilusão de que se ela tem o controle, irá se preservar do sofrimento.
Isto chega ao absurdo de muitas vezes o abusador forçar o término de um relacionamento com atitudes muitas vezes inconscientes mesmo, pois na ilusão do abusador, é preferível terminar do que viver na insegurança e sem controle.
A vítima
Em contrapartida, a pessoa que se sujeita ao abuso; tem um histórico de falta emocional. É bem provável que esta criança tenha percebido sua realidade com um olhar de carência. Há uma sensação de vazio emocional, como se lhe faltasse algo, essa carência primária nasceu das percepções de suas primeiras experiências de infância.
Desta forma, ela busca encontrar no mundo externo, aquilo que lhe falta internamente. Ela procura por alguém que repare nela, que a perceba, que reconheça aquilo que faltou lá trás, e mais, alguém que daria para ela o que ela gostaria de ter recebido, mas não teve. Em nome desta carência a pessoa perde a noção do limite e se sujeita à dinâmica das relações abusivas e tóxicas.
Fases do relacionamento abusivo
Relacionamentos abusivos podem se transformar rapidamente em violência, a velocidade com que isso acontece dependerá de vários componentes emocionais das partes envolvidas, mas no geral, ela passa por 6 fases e lembrem-se sempre, na maioria das vezes, a dinâmica abusiva não é intencional e nem notada, mas escolher continuar no sofrimento talvez seja.
O disfarce perfeito
O primeiro degrau é o que chamamos de efeito camaleão ou mimetismo. Nesta etapa, o abusador é capaz de ler, identificar e decifrar as necessidades outro. Com base nisso a pessoa se adapta, se molda, se transforma para caber na forma daquilo que faltou à outra parte. Ela se empenha para se transformar na alma gêmea do outro, demonstra ser alguém agradável, educada até fazer a captura do outro. Quando ela percebe que o cativou, começam os sinais de ciúmes leves, que podem ser vistos como amor, como cuidado, como preocupação, atenção, carinho.
Adestramento
Há uma “recompensa” cada vez que uma ordem é obedecida. Esta dinâmica é reforçada por pensamentos que a parte abusada tem, do tipo: “nossa, ela realmente me vê”, “puxa ela realmente se preocupa comigo”. Gradativamente ela vai permitindo que a parte abusadora ultrapasse limites e quando há uma resistência ou tentativa de intervir, o abusador recua para facilitar o adestramento.
Justificativa
Então começa a terceira fase que é a imposição de culpa. A parte abusadora passa culpar o outro por seu comportamento disfuncional e até mesmo agressivo. São ouvidas frases do tipo “eu te bati porque você me provocou”, “Se estou com raiva é porque você não me obedece". O abusado começa a se distanciar de si, a deixar de pôr limites, se violentando, se perdendo de si mesmo em troca de migalhas de afeto e atenção. O sentimento de culpa vai sendo cultivado e inibe a reação contra a dinâmica abusiva da relação.
Distanciamento
Nos altos e baixos da relação, quando o abusador percebe que a outra parte começa a querer se incomodar, ele trabalha no distanciamento. Esta é a quarta fase das relações abusivas.
A parte abusada busca um contraponto de suas ações e pergunta para as pessoas de sua confiança, “mas eu sou assim mesmo?”, “eu ajo desta forma?”. E a cada validação, o abusador começa a isolar o outro de sua família, de seus amigos e de seus colegas de trabalho; no objetivo de minar a sua capacidade de acreditar na sua rede de apoio.
Sim, a pessoa perde a sua rede de apoio, e as pessoas que lhe querem bem e estão de fora, percebem a situação e querem ajudar, são duramente questionadas, desacreditadas e neutralizadas.
Normalização
Por fim, chega a quinta fase dos relacionamentos abusivos, que é a de normalização.
Depois que a parte abusada foi dominada, é submetida a uma dinâmica de oscilação emocional de amor e desprezo. Há um ciclo intermitente de tensão / explosão, seguidos de fases de reconciliação / calmaria.
A parte abusada realmente acredita que todos os relacionamentos são assim, relativiza, acha normal e ignora os sinais evidentes de abuso.
Nestes momentos, não é incomum a parte abusadora alimentar as inseguranças da outra pessoa. Ela provoca situações de ciúmes, dando a entender que tem um ‘ex’ lhe rondando, que foi assediada na rede social, tudo para desvalorizar o outro. A ideia é fazê-lo se sentir insuficiente e inseguro.
A mensagem oculta é “eu tenho valor, sou desejado e procurado”, enquanto a outra parte começa a acreditar que tem sorte de ter alguém assim tão especial. Ela se contenta com os momentos de calmaria e relativiza os momentos de tensão.
Resignação
No último degrau desta escada vem resignação. A parte abusadora convence o outro de que ele é incrível! Fala ainda que o outro nunca vai encontrar alguém como ela. São utilizados argumentos depreciativos do tipo: “se você me largar ninguém vai te querer”, “você não é insuportável, só eu mesmo pra te aguentar”, "Você é difícil de conviver".
É neste momento que, qualquer tentativa de reagir à situação, ou de contra-argumentar pode culminar em discussões violentas. Invariavelmente estas discussões se excedem culminando em agressão física. Um dia a pessoa segura seu braço mais forte, outro dia te empurra e as coisas vão evoluindo até se transformarem em verdadeiras surras.
De acordo com o perito e mediador judicial do tribunal de justiça do Rio de janeiro Luiz Wigderowitz: “Não há uma única história que não tenha tido um longo percurso desta escada. Que vai aumentando gradativamente até chegar à violência extremada.”.
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