Meu véu de Maiá
A ilusão é muito interessante...
Ao mesmo tempo que ela te rouba da realidade, pode também te levar a uma profunda descoberta de si...
Não tenho muito apreço por comédias românticas e menos ainda por filme natalinos, mas "Um Homem de Família" (The Family Man - 1999) consegue não apenas fugir de inúmeros clichês como ainda demonstrar como podemos estar perdendo a sutil beleza da vida ao nos apegarmos à algumas ilusões, em especial a de que devemos ser bem sucedidos aos olhos alheios.
"Um Homem de Família" (The Family Man - 1999) |
O filme conta a história de Jack Campbell que, na juventude, ao escolher embarcar rumo à Londres para um intercâmbio que lhe daria muitas oportunidades, abre mão de um futuro com sua namorada Kate. Anos depois, assistimos Jack mais velho, já um milionário muito bem sucedido, logo nos é passada a ideia de que ele havia feito "a escolha certa", mas apesar de ter tudo que o dinheiro pode comprar, Jack é solitário e resume-se a alguém entorpecido por suas conquistas. Na noite do dia 24 de dezembro de 2000, após receber uma ligação da mesma Kate que abandonou, ele segue seu dia normalmente, mas curioso a respeito de como poderia ter sido sua sua vida caso seguisse com ela.
Na mesma noite, ele adentra uma mercearia e durante um assalto inusitado, desarma um bandido. Então, após tentar convencer o homem a buscar uma vida melhor, este lhe provoca perguntando se ele próprio não precisaria ser salvo. Campbell diz que não, afinal, “tem tudo o que precisa”. Como um passe de mágica, após adormecer na noite do dia 24 de dezembro no seu luxuoso apartamento em Manhattam, ele acorda no dia 25 na vida que teria tido se não tivesse ido à Londres. Nesse novo “despertar”, ele descobre que além de uma esposa, ele tem dois filhos e é um simples vendedor em uma loja de pneus que pertence ao sogro. Descobre que sua vida anterior não existe mais e que nesse universo de ordem alternativa, ele precisa escolher cuidadosamente o seu destino: Retomar sua carreira de sucesso ou a mulher de seus sonhos.
A personagem Kate faz você torcer para que Jack deixe tudo e escolha o caminho mais emocional, mesmo que isso represente menor participação na realidade econômica e social que rege a nossa sociedade, ou simplesmente, continuar pobre. Aliás, nesta realidade/ilusão, os poucos momentos que Campbell se permite ter prazer é quando está com ela, quando ele se enxerga como casal com a mulher que jurou amar e cuidar ele parece estar em completude. Aos poucos (bem aos poucos mesmo) Jack vai percebendo que aquela nova vida também tem riquezas.
Mas a vaidade e teimosia do protagonista seguem grandes. Ele só se vê como um homem de negócios, o verdadeiro compromisso que ele parece ter é com o dinheiro e somente isso. A lição que lhe é dada poderia ser curta, mas ele é individualista, obcecado por ter tudo de volta. Nem mesmo simples manifestações de afeto são encaradas por ele como algo normal. Ele é ríspido até mesmo com a sua filha menor, e demora demais a enxergar afeição nos pequenos momentos.
Para todos os efeitos, Jack é humano, e se nega a aceitar qualquer uma de suas versões. Quando tem a família, ele deseja a riqueza, e quando vê essa riqueza se aproximar, ele não quer perder Kate e tudo que veio dessa união. Ele não é iluminado, ao contrário, é burro e fútil.
Um dia, quando finalmente aceita que afinal, não tinha tudo o que queria e precisava na vida, e aprende sua lição, o feitiço da ilusão se desfaz e Jack volta à sua vida solitária e "bem sucedida" em Manhattan, mas com sua consciência finalmente mais desperta.
Maya, a ilusão!
Enquanto vocês estavam sendo conduzidos pelo breve resumo da história, imagino que puderam mergulhar nela ou na imaginação ou em recordação (para quem já assistiu). Todo o sofrimento era um sonho ilusório. Nada aconteceu de fato, Jack nunca foi um pai de família, nunca se casou, nunca teve filhos, não houveram escolhas, sacrifícios e nem mesmo trocas de afeto. No entanto, mesmo se tratando claramente de uma ilusão desperta, o personagem de Nicholas Cage consegue olhar a verdade de sua realidade, consegue olhar para dentro de si.
Assim é a ilusão, assim é Maiá e muitas vezes assim também são nossas vidas.
Maya ou Maiá, do sânscrito, que significa a "ilusão" da vida física, o que se transforma, envelhece e desaparece, o que não persiste. É dito que Maiá criou o mundo junto com Bhrama; enquanto Bhrama criou as coisas reais e materiais, Maiá teria criado as coisas irreais, imateriais; o ego, por exemplo, é ilusório pois pertence a Maiá. É quase impossível compreender ou enxergar Maiá em sua totalidade, mas sabemos que ela existe e não deve ser negada.
Deusa das ilusões e dos sonhos, ela nos envolve em seu manto para que possamos chegar à verdade; assim como Carl Jung falou que vivemos de verdade apenas quando estamos sonhando, e talvez seja essa a relação da ilusão, sonhos e verdade contida nos símbolos e subconsciente.
Assim como descrito no conto acima, quando conseguirmos atravessar as ilusões impostas por ela, conheceremos a verdade e enxergaremos também a realidade como é de fato. Acredita-se que todos temos a nossa própria Maiá e podemos penetrar em nossa própria ilusão para elevar a própria consciência.
Por curiosidade, o principal símbolo de Maiá é a aranha, pois a aranha é capaz de tecer o seu próprio mundo ao seu redor e isso faz com que ela se assemelhe com o arquétipo da tecelã.
Olha... Não sou daqui.
É difícil aceitar sentimento de não pertencer a lugar nenhum, já que uma das maiores necessidades humanas é justamente pertencer. A busca desenfreada por pertencer nos conduz a entrar e a permanecer em relacionamentos tóxicos e por vezes abusivos também, não apenas amorosos, mas familiares, de amizades, de sociedades, de trabalho... Porque no fundo estamos sempre em busca de ACEITAÇÃO.
E é com esta base que eu (e aqui se encaixam muitas pessoas com a mesma condição que a minha), desde criança, abri mão de minha expressão de gênero para simplesmente ter com quem conversar, onde morar, onde trabalhar, quem me amasse (ou pelo menos minha máscara) e etc... Eu sei, eu sei... Eu sei, coisas simples, mas que ainda são negadas se você tem qualquer desvio de gênero, não é exagero afirmar que há quem nem tenha coragem de olhar diretamente para ti, talvez você que não tenha problemas de aceitação não perceba pois nunca passou por algo parecido, é muito semelhante ao branco rico falando que racismo não existe e que somos todos iguais e temos as mesmas chances na vida.
Desde muito cedo somos impostos à comportamentos para "entrar na massa". Quando não seguimos a regra, somos rotulados como diferentes, esquisitos, rebeldes e até doentes. Como queremos ser amados, aceitos e pertencer, nos adaptamos e nos moldamos.
"Eu não quero um filho mulherzinha"... essa dói até hoje |
A partir daí, caímos na rede de Maiá, criamos uma ilusão de quem somos, perdemos a conexão conosco, com nossos sentimentos, nossas necessidades, nossa autenticidade. E o preço de adentrarmos nesta teia ilusória e não sermos quem somos de verdade é MUITO alto.
Passamos a nos calar, para não entrar em conflitos; a fazer programas que não gostamos; a aceitar situações que nos incomodam; a deixar entrar em nossas vidas pessoas que não agregam em nada; a fazer vista grossa a insultos; a aceitar humilhações por achar que merecemos; a omitir alegrias e tristezas e por ai adiante, acho que deu pra entender. Com o aprofundamento da ilusão, chegamos a xingar e depreciar a nós mesmos, é o ápice do auto abandono e da desconexão de si.
Vestimos uma armadura de frieza emocional quase impenetrável; usamos máscaras que nem os melhores estudiosos do comportamento humano desconfiariam; rimos injustamente da pequenez e infantilidade de certos "dramas" alheios, afinal, o que é um bullying de ser gordo ou ter espinhas no rosto perto de não poder ser você por completo, não é?! Não tem espaço para mimimi, não tem espaço pra choro, não tem espaço para desabafos. É uma verdadeira pedra no coração.
Romper com tudo isso é o convite para a busca pelo verdadeiro pertencimento, ao menos o pertencimento de si. Exige muita coragem, muita energia e muito desapego.
Buraco negro à supernova
Uma das consequências diretas de se moldar para se encaixar é a dependência emocional forte. E uma consequência da dependência emocional é entrar facilmente em relacionamentos altamente tóxicos e abusivos, desses especializados em te destruir de dentro para fora. Quem já teve a infelicidade de se apaixonar por um tipinho com esse perfil destruidor vai entender.
Longe de mim praticar a culpabilização da vítima, mas em um relacionamento à dois, o abusado também tem sua parcela de culpa e o relacionamento também não se deu por acaso; o abusador estuda a vítima antes de entrar no relacionamento, a vítima por sua vez NÃO trabalhou ou nem sequer enxerga seu buraco afetivo e vai de encontro ao abatedouro emocional, financeiro, sentimental, físico... Que é o abraço do abusador.
"A alma não tem segredos que o comportamento não revele". No fundo, a intuição sabe aonde estamos nos metendo, mas o buraco afetivo e a ânsia de aceitação é tão grande que nos lançamos de cabeça em fontes rasas mesmo.
Nem nossas máscaras e nem a tal armadura impenetrável consegue nos proteger mais, devemos lembrar que entregamos tudo de bandeja para o abusador. Fomos adestrados como cães, topamos qualquer coisa ridícula para receber migalhas afetivas; superamos nossos limites em prol do abusador e ainda assim nunca somos suficientes; a voz amada pragueja xingamentos e invalidações ao invés de apoio e reconhecimento.
Um belo dia, nos vemos no mais profundo buraco negro, e a frase "antes só que mal acompanhado nunca fez tanto sentido". Mas ai, a mente é invadida novamente com falsas esperanças de afeto e o ciclo infernal recomeça; se a relação fosse totalmente ruim, não perduraria por muito tempo, então o abusador dá uma migalha afetiva e uma falsa desculpa. Mas não se engane, um abusador nunca se sentirá responsável pelo dano que causa, afinal, se ele te machuca é porque você mereceu e ainda deve erguer as mãos aos céus para agradecer daquele ser perfeito estar em sua vida.
MAS, nem tudo está perdido e caso tenhamos lucidez e amor próprio suficientes para reconhecer o abuso, sair da relação e sobreviver a este vínculo com o pão que o diabo amassou, nos restará catar do chão e reparar cada fragmento solto da nossa autoestima estilhaçada. E daqui em diante, TUDO pode se repetir em um próximo relacionamento para quem ama pular de boca em boca sem luto ou TUDO pode mudar a partir do momento em que aceitamos que temos que trabalhar esta carência afetiva antes de partir para uma próxima aventura romântica.
Aceitamos que armadura e máscara "impenetráveis" não são capazes de nos proteger;
Aceitamos que não importa nossa plasticidade, nunca nos encaixaremos bem;
Aceitamos que não importa o esforço, nunca agradaremos a todos o suficiente;
Aceitamos que nem todo afeto vale nosso amor próprio;
Aceitamos, assim como Jack Campbell que afinal, continuávamos solitários e entorpecidos;
Aceitamos que existem pessoas perversas, egoístas e aproveitadoras;
Aceitamos que fomos fracos em renegar a nós mesmos;
Aceitamos a culpa pela nossa carência;
Aceitamos que somos o que somos e NADA nem NINGUÉM pode mudar isso;
Aceitamos que temos uma criança ferida dentro de nós tentando dizer algo MUITO importante;
Aceitamos que caímos na teia de Maiá e nos iludidos o tempo todo...
Ao aceitarmos tudo isso conscientemente com uma boa dose de amor próprio e auto compreensão, atravessamos o véu da ilusão, o véu de Maiá e assim como uma estrela no momento de seu nascimento, implodimos em meio a incontáveis detritos para muito dentro de nós mesmos para logo em seguida explodir em luz, superação, grandeza e beleza, como uma estrela de verdade.
E foi assim que através do tempo, atravessei o meu véu de Maiá, foi assim que a partir de carências, ilusões, abusos, autocompaixão e autoaceitação que me fiz de estrela, me fiz Stella.
Quando olhamos para fora, sonhamos... Quando olhamos para dentro, despertamos |
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