Um futuro afogado

 


Se existe uma figura do folclore brasileiro que me beira o asco apenas de escutar o nome, sem dúvida é Neymar e nem perderei o meu tempo (e o seu também) discutindo os porquês. Mas apesar de pertencer a mais baixa ralé moral, foi dele uma das melhores frases que já ouvi na vida: "Saudades do que ainda não vivemos".

É de se surpreender que saudade, uma palavra atribuída à vivências passadas esteja junto com ainda, que paradoxalmente aqui se refere ao futuro. Parece estranho, mas na verdade é muito mais comum do que imaginamos. Saudades de um futuro que ainda não aconteceu faz referência direta à sonhos ou metas de vida que muito desejamos.



Futuro sonhado

Em um tempo longínquo em que não havia popularidade de informações digitais e o preconceito era muito intenso, me assumi mulher transexual e vivi a vida como pude; sinceramente, mesmo em meio a xingamentos, isolamento, mentiras, depressão, falsidade, ofensas e injustiças, fui feliz, mas ainda assim, sentia que me faltava algo. 

Muitos transexuais vivem duas vidas em apenas uma só, tudo é muito intenso, algumas tribos norte-americanas até deram nome ao fenômeno: Two spirits (dois espíritos) e não importa o quanto a gente tente, nossas vidas NUNCA serão iguais às de pessoas cisgêneras; assim sendo, é complicado identificar algum elemento faltante.



Belo dia, ao ler "na natureza selvagem" de John Karakauer, dei conta que sentia falta de companheirismo, integração social, sentimentos à dois... Enfim, de saber como seria uma vida "normal" e assim, destransicionei (ou retransicionei) para levar uma vida, na medida do possível, normal. Não tardou muito e me redescobri como viajante, não mais bastava viajar, levar alguém junto para conversar e relembrar o antes, durante e depois das paisagens e experiências era muito melhor. No caminho, me descobri também um pai de família.

Em meio a uma grande euforia de descobertas e experimentações, relembrei de um sonho muito antigo, de criança mesmo: Construir uma família.

Sabemos no momento em que decidimos transicionar de um gênero para outro, que alguns caminhos comuns para pessoas normais estariam bloqueados à nós transexuais. Um destes caminhos sem dúvidas é ter uma família biológica, como era bem jovem na época da minha primeira transição e destransição, não considerei este caminho como intrafegável, muito pelo contrário, vi este sonho morrer e ser reascendido várias e várias vezes, sempre com esperança de um futuro cheio de possibilidades e porque não, completude também.



Já na meia idade, dando início a uma segunda e mais madura transição de gênero, vejo este sonho se esvair por entre lágrimas; neste momento lembro do infeliz Neymar, como posso sentir saudades de algo que não conheci, que não vivi... Como isso? Não é?

Pois bem, esta sensação tem um nome, perda ambígua.



Perda ambígua

O termo Perda Ambígua foi cunhado pela pesquisadora e psicóloga Pauline Boss; é o que ocorre quando a perda se dá sem um fechamento, sem a compreensão do que foi exatamente que se perdeu, tudo é muito confuso e difícil de aceitar. Acontece principalmente quando perdemos alguém que ainda está vivo ou que ainda restam dúvidas se está vivo. Por exemplo, alguém que desenvolveu Alzheimer, sim, esta pessoa está viva, mas inacessível; outro exemplo é quando alguém desaparece sem rastros, um sequestro ou acidente aéreo por exemplo. Aqui vale o mandamento de São Tomé, é ver para crer para que o cérebro entenda que chegou o fim.



Para um sonho ainda não vivido, a lógica é a mesma. Fagulhas de esperança apenas reforçam um looping infinito de que um dia quem sabe... Com muitos "talvez"... Aquela esperança tome forma... só que não! E ao alimentar este pensamento acabamos nunca superando a perda e consequentemente, não damos seguimento à vida, não abrimos espaço para o novo.



Como fechar o ciclo?

O que fazer então, já que nem sempre ver ou viver é questão de escolha? Bem, a resposta já foi dada por nossos ancestrais com um costume tão antigo quanto a própria humanidade, um rito de passagem, mesmo que simbólico.



E o que seria um rito de passagem? Que tal, um funeral? Que tal uma lanterna ao mar? Que tal um fechar de olhos mais prolongado? Que tal uma oração de despedida? Isto seria um rito de passagem, algo que simboliza o final de um ciclo para o início de outro.



180 km e 12 horas depois...

E que tal uma carta jogada ao mar juntamente com objetos simbólicos? Esta, foi a maneira que encontrei de enterrar (ou melhor, afogar) alguns dos sonhos que jamais viverei e assim, sair do eterno retorno. Também, foi o dia que decidi jogar fora de vez a máscara de pessoa "normal" e deixar meu rosto nu finalmente exposto ao sol. Definitivamente foi um dos momentos mais marcantes e o que mais chorei na vida. 

Enxuguei as lágrimas e quando abri os olhos novamente, vi meu caminho cristalino para ser seguido sem mais tristezas e lamentos pelo que não viverei.


Cara de choro

E venha o que vier... 

Sem medo de perder o que nunca me foi predestinado...

Sem mais saudades do que não vivi...

Comentários

Postagens mais visitadas