Retalhos e migalhas


Gostam de carnaval? Sim?! Não?! Mais ou menos?! Pois eu detesto... Brincadeiras e opiniões à parte, hoje trago um texto muito, mas muito intimo mesmo; uma dessas obras capazes de te fazer experimentar de tudo um pouco, inclusive melancolia pela época carnavalesca.


Restos do carnaval


Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.


No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.


E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.


Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.


Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.


Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.


Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morreríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! Não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.


Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo, eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.


Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.


Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.


Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.


Clarice Lispector

Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.


A autora desta obra fantástica, Clarice Lispector, possui vários dons, aqui irei frisar o de retornar detalhadamente ao seu passado de criança e revirá-lo com os olhos de adulta. Outro é o de deixar suas frustrações em entrelinhas, mas não tão escondidas e por fim, o dom de emergir quase sempre uma certa melancolia ao leitor.

Como escrito no início desta postagem, esta obra conseguiu tocar muito profundamente em feridas que já nem sequer lembrava que existiam e não deixa de ser chocante como alguém que nem conhecemos, de uma época que nem vivemos, com criação e conceitos tão distintos consegue extrair lágrimas de feridas tão profundas.

Pois bem... Em vermelho destaquei as partes que mais tocam e tentarei traduzi-las de emoções para sentimentos.


"Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim...

...E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara...

...das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança..."


O "poeta bêbado", Charles Bukowski escreveu certa vez que todos temos coisas que contamos a todo mundo e coisas que contamos apenas para os mais íntimos; mas as coisas mais avassaladoras da nossa existência, não queremos contar nem para nós mesmos; assim sendo, lanço os questionamentos no ar: Quem é que não possui, mesmo que da infância, algum "segredo" ou "vontade interior" jamais dita? Quem é que nunca usou uma máscara para esconder esse desejo de si próprio ou de outrem? Quem que nunca abriu mão de si, se anulando em troca de um "bem maior" ou uma adaptabilidade social? Quantas pessoas por ai fogem de si próprias por medo de olhar para dentro?


"...eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco...

...Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola..."


Como bom discípulo da filosofia estoica, é quase possível afirmar que a "menininha Clarice", apesar de seu "orgulho feroz", já dava seus primeiros passos na escola ao se preocupar apenas com coisas que poderiam estar em seu controle, pois no estoicismo isto é evitar angustia (quando não se recebe o que quer) e decepção/frustração (quando se recebe menos do que se acha que merece).

Mas não deixa de ser de uma violência brutal, viver apenas de migalhas de esperança, para esta filosofia grega seria o mesmo que apenas vislumbrar seu lugar na ordenação do cosmos sem nunca sequer estar em harmonia com nada e ninguém.

É cruel como o mundo moderno nos fez acreditar na ilusão do mito do self-made man; o "você quer, você pode" em português, e não à toa as vendas de antidepressivos e ansiolíticos não param de crescer a níveis astronômicos, é doentio enganar uma criança ao afirmar que ela pode ser o que quiser, que basta querer e acreditar...


"...o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso..."

"...Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria..."


Quando, enfim, a menina Clarice está prestes a realizar algo que tanto desejava, o "mundo", representado por sua mãe lhe traz de volta à realidade.

Árdua é a luta de um adulto em aceitar que alguns sonhos infantis nunca seriam realizados não importasse o esforço. Parece bobo? Parece vitimista? Que tal um exercício então? Imaginemos que um filho queira seguir uma doutrinação religiosa diferente; orientação sexual; ou que um adolescente queira outro ofício que não o escolhido pelos pais? 

Ainda que depois de adulto e dono do próprio nariz, quanto tempo e energia seriam perdidos para "desfazer" esta "pequena e inofensiva" imposição? E quantos ruídos ainda ficariam incrustados nesta criança já crescida mesmo após finalmente seguir o caminho por ela escolhido?



"...considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa..."


A lição tirada aqui é que apesar dos traumas, tempo e energias perdidos, alguém um dia, ainda há de caminhar ao nosso lado; enxergando além das mascaras e quando este momento chegar, quem sabe deixamos de alimentar nosso espírito com apenas esmolas e migalhas.

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