Lições do silêncio



Em meados de 2007 o autor Patrick Rofuss mostrava ao mundo o primeiro livro da série "crônicas do matador do rei"; que aliás, viria a ser uma das melhores obras de fantasia já escritas. Nela, somos transportados para um mundo onde a palavra, em especial os nomes (os verdadeiros nomes), têm poder. Acompanhamos a jornada do brilhante e destemido Kvothe em busca do nome das coisas, que em tese, lhe daria o poder necessário para realizar muitas de suas façanhas. No prólogo, somos também apresentados muito sutilmente a um contraponto poderosíssimo à palavra, o silêncio.


"NOITE OUTRA VEZ. A Pousada Marco do Percurso estava em silêncio, e era um silêncio em três partes.

A parte mais óbvia era uma quietude oca e repleta de ecos, feita das coisas que faltavam. Se houvesse vento, ele sussurraria por entre as árvores, faria a pousada ranger em suas juntas e sopraria o silêncio estrada afora, como folhas de outono arrastadas. Se houvesse uma multidão, ou pelo menos um punhado de homens na pousada, eles encheriam o silêncio de conversa e riso, do burburinho e do clamor esperados de uma casa em que se bebe nas horas sombrias da noite. Se houvesse música..., mas não, é claro que não havia música. Na verdade, não havia nenhuma dessas coisas e por isso o silêncio persistia.

Dentro da pousada, uma dupla de homens se encolhia num canto do bar. Os dois bebiam com serena determinação, evitando discussões sérias ou notícias inquietantes. Com isso, acrescentavam um silêncio pequeno e soturno ao maior e mais oco. Ele formava uma espécie de amálgama, um contraponto.

O terceiro silêncio não era fácil de notar. Se você passasse uma hora escutando, talvez começasse a senti-lo no assoalho de madeira sob os pés e nos barris toscos e lascados atrás do bar. Ele estava no peso da lareira de pedras negras, que conservava o calor de um fogo há muito extinto. Estava no lento vaivém de uma toalha de linho branco esfregada nos veios da madeira do bar. E estava nas mãos do homem ali postado, que polia um pedaço de mogno já reluzente à luz do lampião.

O homem tinha cabelos ruivos de verdade, vermelhos como a chama. Seus olhos eram escuros e distantes, e ele se movia com a segurança sutil de quem conhece muitas coisas. 

Dele era a Pousada Marco do Percurso, como dele era também o terceiro silêncio. Era apropriado que assim fosse, pois esse era o maior silêncio dos três, englobando os outros dentro de si. Era profundo e amplo como o fim do outono. Pesado como um pedregulho alisado pelo rio. Era o som paciente – som de flor colhida – do homem que espera a morte."


É consenso achar que silêncio sempre expressa algo de ruim: raiva, frustrações, mágoas, manipulação, desapontamento e resignação. Tudo isso derivado de uma única ação (ou ausência da ação de falar).

Ora, e não é difícil saber o porquê dessa penosa e injusta linha de pensamento, o castigo máximo em muitas prisões por exemplo é a solitária, silêncio total. Já na literatura romântica, por exemplo, Lya Luft, em seu livro “O silêncio dos amantes”, descreve um casal no qual “(…) as coisas não ditas haviam crescido como cogumelos venenosos”. Então, se as palavras que deveríamos ter dito, no momento em que deveríamos ter dito, não forem devidamente expressas, elas apodrecerão lentamente dentro de nós..., e daí em diante surgem milhares de especialistas afirmando o lado sombrio de se optar pelo silêncio.

Mas como diria Rubem Alves, todos querem fazer cursos de oratória para saber falar, mas tão poucos querem aprender a ouvir que inexistem cursos de "escutatória". O ouvir requer silêncio; requer também humildade para acalmar o ego e reconhecer que não somos capazes de supor causa; ouvir exercita empatia também, pois a construção do diálogo exige aprender a ouvir para ser ouvido; o ouvir requer paciência, pois é preciso dar tempo para entender e refletir o que foi dito. O ouvir é muito mais difícil do que o falar, talvez por este motivo também, o silêncio é tão desafiador e incômodo.

Bastam reflexões um pouco mais cautelosas, profundas, mais pacientes e logo percebemos a dualidade deste ato. Ao contrário do que possa parecer, muitas vezes o silêncio tem muito a dizer, carregando em sua aparente falta de palavras uma intensidade tamanha de sentimentos, uma grande carga emocional, há muito mais a se entender no silêncio do que em uma porção de palavras soltas ao vento.

O silêncio pode acalmar, ferir, amparar ou violentar. Em algumas ocasiões traz paz, em outras, desencadeia tempestades. O silêncio também pode corresponder à reflexão, a um turbilhão de pensamentos pulsando dentro de nós. Às vezes é sim, solidão, vazio, dor e tristeza. Outras vezes, é desistência, quando se chega à conclusão que não vale a pena insistir em algo ou alguém. Pode também significar desapego, libertação, livramento.

Vários são os motivos que nos fazem ficar quietos diante de situações que nos machucam. Às vezes, isso acontece devido a pensamentos, como: “É melhor não piorar as coisas”, “Se eu falar vai dar briga”, “Não adianta falar, não vai mudar nada”, “Não quero magoar o outro”, “Ela não vai entender”, etc. E vida que segue, aguentamos o tranco, sofremos em silêncio. No futuro, quem sabe, acontecerá outra situação ou tudo se repete... e aí já sabemos o que fazer: ligamos no automático do “aguenta quieto”.

Mas o que acontece quando o silêncio é sinônimo de sentimentos abafados? Quando não expressamos o que estamos sentindo? Não, as palavras não desvanecem.

No segundo livro da série do matador do rei, encontramos poeticamente a resposta, no capítulo 73, "sangue e tinta":


"Os segredos do coração são diferentes. São privados e dolorosos e não há nada que se deseje mais do que escondê-los do mundo. Eles não inflam nem pressionam a boca. Vivem no coração e, quanto mais são guardados, mais pesados se tornam.

Diz Teccam que é melhor ter a boca cheia de veneno que um segredo no coração. Qualquer idiota é capaz de cuspir o veneno, diz ele, mas nós guardamos esses tesouros dolorosos. Engolimos em seco todos os dias para contê-los, empurrando-os para baixo, para nossas entranhas mais recônditas. Lá eles permanecem, ganhando peso, supurando. Com o tempo, não há como deixarem de esmagar o coração que os contém."

Palavras e sentimentos não expressos nos assombram indefinidamente, e não raramente estamos diante de situações ou pessoas físicas, mas a mente tende a relembrar as reticências fantasmagóricas que ficaram para trás.

E é assim que bons relacionamentos vão se desgastando, coletâneas de pequenas coisas não ditas, que justamente por não terem sido expressas, se transformam em mágoa, raiva, rancor, desrespeito e decepção e acabam por criar um abismo entre duas pessoas.

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