Dissonância cognitiva, ilusão de poder, humildade e pequeno príncipe

Cena da animação "o principezinho" (the little prince, 2015)

Já ouviu falar em dissonância cognitiva? 

Pois bem, é mais comum do que imaginamos. A teoria baseia-se na premissa de que a pessoa se esforça para manter a coerência entre suas cognições (convicções e opiniões) e a realidade em que vive. Quando alguém tem uma crença sobre algo e age diferente do que acredita, ocorre uma situação de dissonância, ou seja, a contradição.

Quando ocorre uma dissonância o indivíduo entra em um conflito íntimo e procura adotar algumas formas para sair deste desconforto:
  • Mudança do Comportamento: tenta reduzir as dissonâncias, mudando suas opiniões pessoais para adequá-las à situação externa conflitante.
  • Mudança do Ambiente: tenta mudar o ambiente e ajustá-lo às suas convicções.
  • Conflito permanente: Caso o indivíduo não consiga mudar as suas convicções e/ou ambiente externo, passa então a conviver com o conflito íntimo da relação dissonante.

A partir dessa teoria podemos entender que o indivíduo se comporta de acordo com suas percepções e não de acordo com a realidade, ou seja, reage conforme àquilo que lhe é confortável ou não com suas cognições.

Na famosíssima obra "O pequeno príncipe" de Saint-Exupéry, nos deparamos com um caso bem evidente de dissonância cognitiva. Antes de sua chegada a terra, o príncipe visita alguns asteroides, em um deles vivia a figura do rei, que não tolerava indisciplina, e era tão poderoso que até as estrelas lhe obedeciam, vivia no asteroide 325, tão pequeno que o manto real cobria o planeta quase inteiramente.

É o primeiro dos “donos do mundo” que o Pequeno Príncipe encontra. O Rei acha que tudo e todos são seus súditos e que pode controlá-los; apesar de pensar que ele governa todo o Universo, o seu poder é vazio porque ele só pode dar ordens as coisas que aconteceriam mesmo sem que ele mandasse.

Mesmo sendo mandão, o Rei possui um coração bom e explica o seu poder até que com uma boa lucidez: "Autoridade repousa sobre a razão"; e ensina ainda com bastante sabedoria e humildade: "É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar". Sabemos que as ordens do rei, apesar de vazias e sem sentido, seriam sempre razoáveis.

Esta passagem nos ajuda a compreender melhor um caso bem claro de dissonância cognitiva, o rei sabe que não manda em nada, mas não perde a compostura de um monarca e por isso ordena apenas coisas que aconteceriam ordenando ou não; de quebra tem ainda como bônus a crença de ser muito bom e coerente em suas ordens, ou seja, apenas alinhou suas cognições aos acontecimentos do ambiente.

O real problema se dá quando existe grande tensão psíquica gerada pela dissonância cognitiva, e ai entram os mecanismos de defesa da cognição que vimos acima, ou mudamos de comportamento (como o rei) ou mudamos o ambiente ou o pior, fazemos uma percepção e memorização seletiva de informações para que estas se adequem apenas ao que acreditamos. Um bom exemplo é a legião de cristãos que prega amor e perdão ao próximo, mas ao mesmo tempo prega desgraça e morte alheia. Pregam a preservação da vida e amor ao próximo ao se postarem contra o aborto por exemplo; mas ao mesmo tempo pregam também pena de morte sem perdão. Outro excelente exemplo são os terraplanistas ou negacionistas de vacinas, ambos acreditam SOMENTE nos "estudos e artigos" que lhes convém e renegam milhares de outros dados que vão de contra com suas crenças. Bem, deu para notar o quão nociva é a dissonância cognitiva para a imparcialidade ou até mesmo para a evolução pessoal.

Talvez a melhor postura diante da dissonância cognitiva ainda sejam pensamentos mais humildes, que reconhecem que nos humanos não podemos controlar tudo, como o estoicismo ou o budismo, onde seus participantes reconhecem esta impotência se resumem a aceitar (ou ao menos tentar) as coisas que estão fora do poder de mudança e controle. Assim, tentemos imaginar a figura do rei novamente, este provavelmente gastaria menos energia se apenas aceitasse que certas coisas estão foram do controle de seu poder real ao invés de dar mil desculpas sem muito sentido.


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Ah ! Eis um súdito, exclamou o rei ao dar com o principezinho.
E o principezinho perguntou a si mesmo:
Como pode ele reconhecer-me, se jamais me viu?
Ele não sabia que, para os reis, o mundo é muito simplificado. Todos os homens
são súditos.
— Aproxima-te, para que eu te veja melhor, disse o rei, todo orgulhoso de poder
ser rei para alguém.
O principezinho procurou com olhos onde sentar-se, mas o planeta estava todo
atravancado pelo magnífico manto de arminho. Ficou, então, de pé. Mas, como estava
cansado, bocejou.
É contra a etiqueta bocejar na frente do rei, disse o monarca. Eu o proíbo.
— Não posso evitá-lo, disse o principezinho confuso.
Fiz uma longa viagem e não dormi ainda...
Então, disse o rei, eu te ordeno que bocejes. Há anos que não vejo ninguém
bocejar! Os bocejos são uma raridade para mim. Vamos, boceja! É uma ordem!
— Isso me intimida... eu não posso mais... disse o principezinho todo vermelho.
— Hum ! Hum ! respondeu o rei. Então... então eu te ordeno ora bocejares e ora...
Ele gaguejava um pouco e parecia vexado.
Porque o rei fazia questão fechada que sua autoridade fosse respeitada. Não
tolerava desobediência. Era um monarca absoluto. Mas, como era muito bom, dava
ordens razoáveis.
"Se eu ordenasse, costumava dizer, que um general se transformasse em gaivota, e
o general não me obedecesse, a culpa não seria do general, seria minha."
— Posso sentar-me? interrogou timidamente o principezinho.
— Eu te ordeno que te sentes, respondeu-lhe o rei, que puxou majestosamente um
pedaço do manto de arminho.
Mas o principezinho se espantava. O planeta era minúsculo. Sobre quem reinaria o
rei?
— Majestade... eu vos peço perdão de ousar interrogar-vos...
— Eu te ordeno que me interrogues, apressou-se o rei a declarar.
— Majestade... sobre quem é que reinais?
— Sobre tudo, respondeu o rei, com uma grande simplicidade.
— Sobre tudo?
O rei, com um gesto discreto, designou seu planeta, os outros, e também as
estrelas.
— Sobre tudo isso?
— Sobre tudo isso. respondeu o rei.
Pois ele não era apenas um monarca absoluto, era também um monarca universal.
— E as estrelas vos obedecem?
Sem dúvida, disse o rei. Obedecem prontamente.
Eu não tolero indisciplina.
Um tal poder maravilhou o principezinho. Se ele fosse detentor do mesmo, teria
podido assistir, não a quarenta e quatro, mas a setenta e dois, ou mesmo a cem, ou mesmo
a duzentos pores-do-sol no mesmo dia, sem precisar sequer afastar a cadeira ! E como se
sentisse um pouco triste à lembrança do seu pequeno planeta abandonado, ousou solicitar
do rei uma graça:
— Eu desejava ver um pôr-do-sol ... Fazei-me esse favor. Ordenai ao sol que se
ponha. . .
— Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como borboleta, ou
escrever uma tragédia, ou transformar-se em gaivota, e o general não executasse a ordem
recebida, quem — ele ou eu — estaria errado?
— Vós, respondeu com firmeza o principezinho.
— Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar, replicou o rei. A
autoridade repousa sobre a razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar, farão
todos revolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são
razoáveis.
— E meu pôr-do-sol? lembrou o principezinho, que nunca esquecia a pergunta que
houvesse formulado.
— Teu pôr-do-sol, tu o terás. Eu o exigirei. Mas eu esperarei, na minha ciência de
governo, que as condições sejam favoráveis.
— Quando serão? indagou o principezinho.
— Hein? respondeu o rei, que consultou inicialmente um grosso calendário. Será
lá por volta de ... por volta de sete horas e quarenta, esta noite. E tu verás como sou bem
obedecido.
O principezinho bocejou. Lamentava o pôr-do-sol que perdera. E depois, já
estava se aborrecendo um pouco!
— Não tenho mais nada que fazer aqui, disse ao rei.



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