Os mendigos de Exupéry
É que não foram as vezes que vi a piedade enganar-se.
Nós, que governamos os homens, aprendemos a sondar-lhes os corações, para somente ao objeto digno de estima dispensarmos a nossa solicitude. Mais não faço do que negar essa piedade às feridas de exibição que comovem o coração das mulheres. Assim como também a nego aos moribundos, e além disso aos mortos. E sei bem porquê.
Houve uma altura da minha mocidade em que senti piedade pelos mendigos e pelas suas úlceras. Até chegava a contratar curandeiros e a comprar bálsamos por causa deles. As caravanas traziam-me de uma ilha longínqua unguentos que diziam ser derivados do ouro, que têm a virtude de voltar a compor a pele acima da carne. Procedi assim até descobrir que eles tinham como artigo de luxo aquele insuportável fedor. Surpreendi-os a coçar e a regar com estrume aquelas pústulas, como quem aduba uma terra para dela extrair a flor cor de púrpura. Mostravam orgulhosamente uns aos outros a sua podridão e gabavam-se das esmolas recebidas.
Aquele que mais ganhara comparava-se a si próprio ao sumo sacerdote que expõe o ídolo mais valioso.
Se consentiam em consultar o meu médico, era na esperança de que o cancro deles o surpreendesse pela pestilência e pelas proporções. Chegavam a empregar os cotos para conquistar um lugar no mundo. Daí também aceitam os cuidados como uma homenagem e oferecerem os membros a abluções bajuladoras.
Mas, apenas se o mal os deixava, descobriam-se sem importância. Já nada alimentavam que fosse deles próprios, davam-se por inúteis. O único remédio era ressuscitar de novo essa úlcera que vivia à custa deles. E, uma vez envoltos de novo no seu mal, gloriosos e vãos, pegavam na escudela, e tornavam a empreender o caminho das caravanas. Voltavam a espoliar os viajantes em nome dos seus sórdidos deuses.
Cidadela, 1948.
Antonie de Sant-Exupéry
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