As lições de um anjo


Entre as 10 grandes profetizas da antiguidade grega, sempre se destacou a Sibila de Cumas. Nascida em Éritras, na Jônia, numa caverna do monte Córico, de pai humano e mãe ninfa, a jovem, desde o nascimento, demonstrou possuir, com muita competência, o dom da profecia.

Em Cumas a profetiza cresceu em feitos e fama até ser cognominada de Deífoba, isto é, semelhante às deusas. Conta-se que ela levou Enéias, príncipe troiano, para visitar Anquises, seu pai recentemente morto, nos territórios de Hades. Conta-se que ela foi ao rei romano Tarquínio, o Soberbo, no século VI a.C. para lhe oferecer, por um preço altíssimo, nove livros de suas profecias organizadas, mas o rei barganhou e ela destruiu três livros, re-ofertando os seis restantes pelo mesmo preço, o rei barganhou novamente e ela destruiu mais três livros, re-ofertando os três últimos pelo mesmo preço original. O rei, desesperado, comprou os três Livros Sibilinos restantes pelo preço que, no início, pagaria os nove. Conta-se que o original destes livros foi destruído no século I a.C. e que suas últimas cópias desapareceram no século V d.C. Assim a Sibila de Cumas teria vivido, no mínimo, da Guerra de Tróia ao período dos sete Reis Romanos. O poeta Virgílio conta que a Sibila de Cumas profetizou o advento do triste deus cristão, aquele que é traído, agoniza, morre, ressuscita e inventa o pecado e a culpa. O que explicaria tanta longevidade?

Em Cumas é que Apolo, o deus das profecias, a procura, a encontra, não esconde a admiração e a deseja. Mas, mesmo sabendo-se amada por Apolo, a Sibila se sabia humana, sujeita ao envelhecimento e à morte, e que seria mais um caso na parábola do deus. Ela então escolhe ser a sumo-sacerdotisa, não sua amante e pede a ele um dom: diante do deus ela toma, no côvado das mãos, toda a areia de praia que pode segurar e diz querer viver tantos anos quantos grãos de areia houver ali. O deus não discute: será muito bom para ele tê-la por mais tempo, cuidando de seus templos, falando por ele para ajudar estes loucos humanos, enfrentando os estranhos novos tempos que pareciam estar na soleira. O deus então lhe concede nove vidas de 110 anos, a medida mais longeva da vida humana, isto é, lhe concede 990 anos de vida. Este número representa o símbolo de uma longevidade mítica.

Mas esquecera um detalhe, de todo indiferente ao deus. Sibila não pede a permanência da juventude e então ela encolhe, emurchece, transforma a pele num pregueado de lama esturricada. Somente os olhos e a voz permanecem potentes. Conta-se que, para que o vento não a carregue e os animais domésticos não a devorem, ela é posta dentro de uma gaiola, ser de crostas escuras, mãos encarquilhadas, uma cigarra vinda das profundezas da terra e do tempo e que continua, com seus olhos potentes, a compreender o mundo e, com sua voz potente, a antecipar as sinas. Todos, em volta, morrem. Só a Sibila de Cumas não. Cem anos, trezentos anos, oitocentos anos, até a dor já passou além da dor, e a Sibila de Cumas não morre.

Conta Ovídio que, nas noites quentes da Campânia, as crianças ouviam a voz potente lamentar sua longa e velha vida. E as crianças, em algazarra, perguntavam: Sibila, o que anseias? E, em meio aos mais pungentes lamentos, a voz sussurrava: "Eu, anseio morrer".

Certamente Sibila não conhecera a papagaia Rosa, do contrário, lhe tomaria de exemplo...

Com idade já muito avançada, não voava a anos, mal enxergava, as vezes até desconfiava que também já não ouvia tão bem, mas ao menor sinal de chuva e a cada aparição de da "hora dourada", isto é, ao nascer e ao pôr-do-sol, onde a luz natural é mais bela, ela, assim como todos os papagaios, era tomada por uma euforia que mal conseguia conter em seu minúsculo corpo e logo tinha necessidade de extravasar com gritos eloquentes, bater de asas vigorosos e repetitivos, até um "esboço de sorriso" parecia transparecer em seu bico. Ao passo que para a vizinhança, tudo era apenas barulho, para mim, parecia mais como uma celebração de estar vivendo um novo dia que nascia ou o agradecimento por mais um dia vivido. Seria ingenuidade acreditar que terceiros nos entendessem, afinal, foram mais de trinta anos de convívio, tempo razoável para conhecer algumas nuances.



Logo cedo, era acordado com seu bico beliscando algum dedo dos pés ou uma das orelhas, quase aposentei meu despertador a pilhas...no final do expediente de trabalho, ou da chegada de uma viajem, ou de uma simples ida ao cinema, ansiava chegar em casa e sentir o toque das penas; se por ventura ficasse até tarde no computador, meu ombro logo era transformado em poleiro e ela adormecia até começar a "pescar"; a comunicação não verbal pairava em casa. Durante as refeições, sempre havia um lugar na mesa para ela comer próximo, do contrário, era briga certa. Falando em desentendimentos, o ciúme sempre fora intenso, ninguém poderia chegar perto para invadir ou roubar nossa intimidade...

Nunca vira gaiola ou corrente, ou qualquer outra crueldade para prender pássaros, a menos, claro que fosse para transporte; apesar dos rituais diários e aparente liberdade, minha Rosa teve uma vida miserável, e nada em meu alcance mudaria isso, afinal, papagaios gostam de fazer coisas de papagaios, e não de humanos. Houveram dias em que quase podia apalpar a solidão e a tristeza de ter sido arrancada de seu lar para servir de souvenir em alguma feira barata; e esta talvez tenha sido a maior lição a mim ensinada. Longe das escolas e dos professores convencionais, ouvi o não dito, senti junto e passei a pensar "e se fosse eu", captei nuances em um olhar, distingui variações sonoras quase imperceptíveis... talvez este seja o poderoso dom da empatia me foi ensinado.

Meu sonho de vida era poder envelhecer sossegado em uma casa segura, provavelmente em Bragança, Salvaterra, Salinópolis ou até mesmo mosqueiro, todas no estado do Pará. É claro que ela estaria na janela de casa, ou em algum canto preferido com seus brinquedos ruídos pelo poderoso bico. E quando chegasse o dia de seu encontro com a eternidade, sentiria a dor da perda, mas ao mesmo tempo a serenidade de ter proporcionado um fim de vida digno.

Infelizmente, somos teimosos em não seguir os instintos, viajei para muito, muito longe com a afirmação de Espinoza cravada no peito: "Só morremos mesmo é de tristeza"; consciente que causaria sofrimento muito além do que o coração de uma ave pode suportar; mas ainda com a tênue esperança de um dia conseguir uma licença para traze-la comigo; ao longo da vida, resistiu bravamente a caça, a ignorância, a violência, a pobreza e até a humilhação de ser tratada como incomodo, mas não pode resistir ao abandono. Assim, minha rosa se definhou com o passar dos dias, morreu debilitada, triste, longe de mim e de certa maneira entregue a própria sorte, afinal, poucos teriam o mesmo zelo e cuidado com algo tão frágil como uma rosa.

Mal passaram os dias "oficiais" de luto, e muitos já me perguntam se irei querer outro papagaio... alguns, sugeriram inclusive encontrar um igual e por o mesmo nome... já lembro da raposa falando ao príncipe: "foi o tempo que dedicastes a tua rosa que a fez tão importante...", logo confirmo o quanto nos humanos somos narcisistas, tentando aliviar o desejo do ego, mesmo que isto signifique o inferno de alguma outra vida. Não...

Pode parecer estranho, o papagaio no papel de ave divina, mas isso vai ao encontro de tradições antigas e medievais, do tempo em que os europeus tinham dele apenas vagas noções. Sérgio Buarque de Holanda dedica a esse tema um trecho do livro Visão do Paraíso. Antes da exportação em massa dos papagaios da América, raro era o europeu que tivesse visto a ave. Afirmava-se que era originária da "Índia", um lugar meio mágico, que não se sabia bem onde ficava, ao qual se atribuíam prodígios de variada espécie. Nas Navegações de São Brandão, repositório medieval de origem irlandesa em que se misturam lendas célticas e cristãs, fala-se de uma ilha milagrosa, só habitada por papagaios. Eles descenderiam dos anjos que, com Lúcifer, foram expulsos do paraíso. Como porém só tinham acompanhado o mestre por costume, e não por se identificar com sua maldade, receberam um castigo menor, o de se transformarem em pássaros.

Passo a achar que estas lendas podem ser verdadeiras, e apesar de todo sofrimento, todo ciúme, toda solidão e mágoa, minha Rosa na verdade foi um anjo em minha vida. Adeus minha amiga e obrigado pela jornada...

* ??? - 17/11/2018








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